terça-feira, 29 de dezembro de 2009

No Éden

A Mulher suspira, com cefaleia.
Estava condenada à felicidade.
Até voltarem as regras.

domingo, 27 de dezembro de 2009

os cinco

"na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco. "

José Luís Peixoto, A criança em ruínas.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Misericórdia

Esquecido na minha fruteira
Restava um murcho kiwi.
Resgatei a sua solidão.
Quanta misericórdia,
Comi-o.

Voto

Antecipando o próximo ano
Eu pediria que na passagem
me soprassem rapidamente
os cem anos acumulados
e assim voltasse
lentamente
à minha idade.

Ou, quem sabe, até um pouco menos.

Estação

Sentada num banco de madeira
Via a vida passando como um comboio
Ora veloz que nem TGV
Ora resfolegando que nem regional

(Do altifalante o moço anuncia
Viagem sem retorno)

Guarda

Dependurado pelo pescoço no corrimão e sem censura
É donde ele me espia em grossos pingos
(O objecto mais incómodo
É por vezes o mais necessário)

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Humphrey Bogart

"Era a cara que tinha e foi-se embora
mas nunca foi tão visto como agora
O seu olhar é água pura água
devassa-nos dá nome mesmo à mágoa
Ganhámo-lo ao perdê-lo. Não se perde um olhar
não é verdade meu irmão humphrey bogart?"

Ruy Belo

sábado, 5 de dezembro de 2009

Memória de elefante I

Eu não preciso mesmo disto.
A antiga namorada do teu antigo amor de há décadas. Dentista brasileira. Isso.
O dia de anos de fulano X, que vimos uma vez de fugida. Perfeitamente, 7 de Julho.
A tua colecção de isqueiros bic. Anos depois encontrei o castanho pequenino que faltava.
(e não consegui oferecer-to)
De verdade, tenho uma memória embaraçosa.
Reset necessita-se.
(há osteomalácias hipofosfatémicas e raquitismos independentes a querer entrar)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

L´angoisse (ou fábula angustiada)

Nasceu num dia de chuva, entre uma canção de Gainsbourg e um conto de Lispector, apresentando-se logo crescida, peituda e estrangeira, atirando de chofre num gesto de jogar o cabelo para trás:
- Não se queira meter comigo, que carrego destruição.
Como jovem audaz e um pouco tolo, ignorou os avisos tomando por inquietude ou vivacidade o que transportava como uma pedra quente a incendiar-se.
(E tentaram asfixiá-la com cigarros sucessivos, iludi-la com possibilidades de amor)
Tentaram. Mas esse sentimento que é feminino por biológica condição veio no Inverno, medrou e inçou, espalhando-se como um engolir em seco, uma salva de palpitações inesperadas ou um gosto amargo de ressaca.