sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A transformação em pássaro


O espelho não engana. 
Foram-se as medidas cheias.
Adelgaçou-se o pescoço. 
Afilou-se o nariz, estreitou-se o rosto.
Ajudando à metamorforse,
pneumatizaram-se até os ossos.
Passo por passo, acontece.
A transformação em pássaro.
Cara de pássaro.
Coração de pássaro.
Batem irrequietas
As asas abertas sacudindo as penas.

Resta saber o que fazer aos olhos
que alheios à mudança
carregam ainda redondos
toda a sua humanidade.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Questão de olhar

A rapariga sem cabelo usa um lenço vermelho
e fuma um cigarro contra a parede
o joelho flectido

A rapariga é bonita
tem um olhar que
desafia.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Quem vê caras

A rapariga gorda e carrancuda à porta do metro
veste uma T-shirt que promete
em letras estilizadas
O teu sorriso é a tua maior riqueza.

domingo, 17 de novembro de 2013

A ilha do Corvo

Eu nadava nas águas profundas dos Açores com um grupo de mergulhadores mas não usava fato nem botija de oxigénio. Eles identificaram cada espécie de golfinho que, à nossa volta, saltou fora de água em acrobacias aos círculos. 
Delirava com a ideia de liberdade total, as minhas pernas soltas no vazio a nadar onde passam as baleias.
Nadámos sem parar da ilha Terceira até ao Corvo, o que equivale certamente a muitas milhas náuticas. 
Íamos em missão: havia um déspota a aterrorizar os habitantes. 
Os trabalhadores eram explorados e as marmotas estavam a entrar em extinção. 
As marmotas eram uns mamíferos estranhos, tipo malas de avião com pijamas de felpo cor de salmão vestidos. 
O cenário era apocalíptico como no filme, localizámos as marmotas e os trabalhadores.
O tirano dizia "Eu sou o dono da ilha". 
Era o mesmo que me disse "Eu sou o dono do prédio".
Eu comandava a expedição. 

sábado, 16 de novembro de 2013

Depressões de Dezembro


É sempre assim: o solstício de Inverno provoca-me depressões. Apetece-me encher a cara de pó-de-arroz verde, como fazia T.S. Elliot, e andar por aí, pelas ruas, olharenta e macerada, inspirando dó aos transeuntes. Incapaz de sentir ou escrever, entretenho-me a ler o que, em Dezembros distantes, outros pensaram. Pode ser que, desta forma, a minha cabeça desperte. Em 21 de Dezembro de 1801, Dorothy Wordsworth inscrevia, no seu Diário: “As cartas que hoje chegaram de Coleridge eram melancólicas: tinha sofrido dos intestinos. Cá em casa, ficámos todos muito deprimidos. William escreveu-lhe para Somersetshire.” Algum tempo depois, a 10 de Dezembro de 1812, Lord Byron confidenciava: estou ennuyé, para além do que é habitual. Sou todavia demasiado preguiçoso para me matar, além de que esse gesto iria certamente aborrecer Augusta...” Um século depois, em vésperas de Natal, o jovem Evelyn Waugh planeava o seu futuro: “Decidi deixar crescer o bigode, uma vez que, de momento, não me posso dar ao luxo de gastar dinheiro com roupas novas e quero mudar alguma coisa no meu aspecto físico.(...)

MFM, Vida Moderna

Nunca serei de direita

(...) A Direita portuguesa lutou quanto pôde para que o povo não tivesse acesso aos mecanismos de decisão política e se mantivesse num estado de miséria conducente à docilidade. Se hoje temos liberdade, é bom lembrá-lo, à Esquerda, não à Direita, o devemos. Apesar da propaganda, a Direita não está interessada em libertar nada, nem ninguém. O que aconteceu foi simples: quando o Estado deixou de servir os seus exclusivos interesses, a Direita reagiu com a fúria de quem vê um servo revoltar-se. O liberalismo que lhe interessa reduz-se quase só à possibilidade de despedir operários à vontade e de sanear serviços públicos com alguns vestígios de controlo por parte da oposição. Quanto ao resto, a protecção sabe-lhe bem.
Dito isto, é evidente que a Esquerda portuguesa, como aliás a europeia, enfrenta problemas. A Revolução Industrial fizera aparecer duas classes, sem inserção no velho mundo feudal, e por isso particularmente disponíveis para a luta. Natural seria, como veio a acontecer, que os principais conflitos tivessem como ponto central a propriedade, único critério que permitia distinguir os homens. Os operários não percebiam por que motivo haviam de aceitar esses burgueses brutais até há pouco tão desfavorecidos quanto eles. A desigualdade social, vista como natural num mundo mais baseado no status do que no dinheiro, aparecia-lhes como um crime revoltante.
Os trabalhadores perceberam que tinham de se unir para obter uma vida mais digna, para o que criaram sindicatos, cooperativas, partidos. Se havia quem falasse em Revolução, havia certamente muito mais gente preocupada em discutir horários de trabalho, a idade mínima para entrada nas fábricas, melhorias salariais. Foi assim que se foi gerando uma visão do mundo partilhado por milhões de trabalhadores, radicalmente oposta à cultura dominante. Talvez não soubessem que aquilo que andavam a fazer se chamava luta de classes, mas não tinham quaisquer dúvidas que estavam envolvidos num combate sério, digno e generoso.
Pouco a pouco, à medida que as sociedades se tornavam mais complexas, à medida que os governos social-democratas esbatiam as desigualdades mais gritantes, à medida que a prosperidade permitia aos filhos dos trabalhadores subir na vida, esta cultura foi-se esboroando, a ponto de, no berço da Revolução Industrial, só nas velhas comunidades se encontrarem ainda alguns vestígios. O velho Andy Capp, essa genial caricatura de um operário, está em riscos de extinção. E, com ele, todo o programa clássico da Social-Democracia, a começar nas nacionalizações.
A Esquerda moderna terá de resolver a tensão entre a tradição humanista, liberal e individualista, e a tradição socialista, cujos valores centrais são a solidariedade, a igualdade e a luta colectiva. A começar, precisa de dar aos seus membros a possibilidade de respirar livremente. Precisa, depois, de compreender que a palavra igualdade, quando por ela proferida, adquiriu uma conotação negativa, enquanto, na boca da Direita, o termo passou a significar igualdade de oportunidades para se comer salmão fumado ao jantar.
Seja eu o que for, de uma coisa tenho a certeza: não sou, nunca serei de direita. É mesmo possível que me considere de esquerda por me horrorizar a alternativa: a de pertencer a uma tribo que passa os dias a bramar contra os impostos, a lamentar o desaparecimento das criadas e a defender que os fracos devem ser eliminados. Mesmo paralisada, prefiro-lhe a Esquerda.

MFM, Vida Moderna

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Bluebird

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say, stay in there, I'm not going
to let anybody see
you.
there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I pour whiskey on him and inhale
cigarette smoke
and the whores and the bartenders
and the grocery clerks
never know that
he's
in there.

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say,
stay down, do you want to mess
me up? 
you want to screw up the
works? 
you want to blow my book sales in
Europe? 
there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too clever, I only let him out
at night sometimes
when everybody's asleep.
I say, I know that you're there,
so don't be
sad.
then I put him back,
but he's singing a little
in there, I haven't quite let him
die
and we sleep together like
that
with our
secret pact
and it's nice enough to
make a man
weep, but I don't
weep, do
you? 

Big night on the town

drunk on the dark streets of some city,
it's night, you're lost, where's your
room?
you enter a bar to find yourself,
order scotch and water.
damned bar's sloppy wet, it soaks
part of one of your shirt
sleeves.
It's a clip joint-the scotch is weak.
you order a bottle of beer.
Madame Death walks up to you
wearing a dress.
she sits down, you buy her a
beer, she stinks of swamps, presses
a leg against you.
the bar tender sneers.
you've got him worried, he doesn't
know if you're a cop, a killer, a
madman or an
Idiot.
you ask for a vodka.
you pour the vodka into the top of
the beer bottle.
It's one a.m. In a dead cow world.
you ask her how much for head,
drink everything down, it tastes
like machine oil.
you leave Madame Death there,
you leave the sneering bartender
there.

you have remembered where
your room is.
the room with the full bottle of
wine on the dresser.
the room with the dance of the
roaches.
Perfection in the Star Turd
where love died
laughing.