sábado, 19 de março de 2011

Sinceridade e bom humor

A rapariga apaixonada, lamenta.
Ele tem o cabelo comprido.
E então, já lhe disseste?
Sim. Nem penses que corto o cabelo por tua causa.
Mmm. Um bom começo.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Ceci

Há dois modelos de texto autobiográfico: a autobiografia em directo e a autobiografia em diferido. Aqui pratica-se o segundo.

Pedro Mexia, na Lei Seca.

(ceci n´est pas une pipe
ou isto não é um diário)

quarta-feira, 16 de março de 2011

Questão de conta

Do que abraçaste terão que te abraçar em dobro.
Do que tentaste terão que tentar em dobro.
Do que deste darás metade.
O passado duplica a exigência.
Do que em ti morreu nada sobrou.
Vezes quanto. Vezes tanto.

Evangelização

A senhora diz que o mundo está a acabar.
Eu concordo e isso deve ser o meu sinal.
Ela diz que é testemunha de Jeová.
E que há uma pessoa que a ajuda a compreender e a esperar o fim do mundo.
Eu apresso-a, vá vá.
Ela promete ou ameaça, para a próxima falaremos com mais vagar.
(A minha alma penada cheira-se a léguas?)

terça-feira, 15 de março de 2011

Na fruteira

Senhor Cézanne, equivocou-se
A fruteira é uma natureza viva
onde medram bolores de tangerinas murchas
Tinha razão o doutor Fleming.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Neurose

Depois da corrida desenfreada
de saltar aos quadros da parede
e às andorinhas do Bordallo

Depois da pequena crise histérica
jaz no tapete a psicogata
em estado pós-ictal

Menina de coro

X. lamentando não lhe dar o álcool uma safadeza de corista barata.
Espero que gostes de Smiths.
Por mim já punha a tua namorada em coma.

Imperador

Houve aquela vez em que nos zangámos.

Tu compraste um bombom, o rapaz era giro, eu ri-me do lado e ele deu-te dois.
Nós éramos duas, eu reclamei o meu bombom.
E tu, és sempre a mesma! Por é que tens que achar que é sempre tudo para ti? Fui eu que pedi, se ele mos deu a mim! a mim! porque haveria de ser um para ti?
Eu de boca cheia, que o bombom era Imperador, a mastigar depressa e de pirraça o troféu.

Havíamos de concordar, gostamos muito de chocolate.
E toda a questão se deu porque o rapaz era giro.

Comédias e provérbios: nas linhas tortas

Em resposta à minha agressão, chega a notificação pelo correio.
Em letra de escola primária, a descrição sumária: porquanto a infractora estacionou o veículo em passeio impedindo a passagem de peões. Com os melhores cumprimentos, o comandante da D.T., F. Evangelista.
Deus escreve certo por linhas tortas?
A justiça tarda mas sempre chega?

De qualquer das formas, é reconfortante saber que por aí anda um F. qualquer atento à minha evangelização.

domingo, 13 de março de 2011

Na balança

Dieta? Desporto?
Não. Cólon irritável.
(fiu fiu)

sábado, 12 de março de 2011

Fumar mata

Fumar mata. Com cinco inconclusos cigarros
morrerei decerto doutro motivo.
Cigarros escondidos, obrigatórios, demonstrativos, sexuais,
cigarros ocultos atrás de livros, fumados
na casa de banho que o vento depois não drenava,
cigarros amargos e engasgados na garganta,
comprados, deitados fora,
cigarros infrutíferos como esses anos em tudo o mais,
nem rodapé biográfico mas erupção sociológica.
Fumar mata. De não fumar nada direi.



Pedro Mexia
Vida Oculta
Relógio D´Água, 2004

Carta sem selo

Caro senhor
Eu não sei como lhe diga,
como me explicar,
mas habituada a vê-lo seguro
tão eloquente e bem falante,
vê-lo assim, a dar-se à ternura,
eu não sei que me parece
o encontrá-lo tão sentimental.
Olhe, é piegas, embaraçoso,
como surpreendê-lo ao espelho
vestindo a roupa da sua mãe
achá-lo com um buraco na meia
ou então topar-lhe
um selinho na cueca.

a última vez

organizei uma festa para a qual
convidei apenas os meus
amigos suicidas. fazemos tudo como
se fosse a última vez

queres vir ao meu inferno

gostava de te mostrar as pequenas
cabeças falantes guardadas nos lugares mais
escuros da minha casa. gostava que
ouvisses o que dizem

os mortos, encostados às paredes e com
problemas de equilíbrio, disciplinam-se
lentamente. vês a minha casa

vou buscar o meu coração. guardei-o aqui
algures e, por ti, tenho a certeza, vale a
pena voltar a encontrá-lo e correr todos os
riscos de novo

cuidado com o cão, não morde, mas é
pesado e pode tirar-te o fôlego com as
patas no peito e depois vou querer
beijar-te

achas que podes não morrer antes

há champanhe e bolo de chocolate


valter hugo mãe

folclore íntimo
Cosmorama Edições, 2008

(cuidado com o cão
não morde mas pode
tirar-te o fôlego
e depois
há bolo de chocolate
e eu posso ainda
querer beijar-te
por isso
achas que podes
não morrer antes?)

Questão de justiça

o poeta arredondado
quase careca
falava baixinho
com voz doce
eu confesso
agi por despeito
julguei pedante
até reconhecer
no seu talento
origem humilde
até admiti
as minúsculas
não lhe vão mal
e não corei
com o elogio
de chamar-lhe
o poeta.

Cacos do cio

À custa da natureza dengosa
está a minha casa a tornar-se
bastante minimalista.

Espaço moderno onde não pode
caminhar descalço sem ferir-se
nos cacos do cio.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Cores primárias

ele diz
encontrei-te
acabou-se o teu sossego
dizes mata
e eu esfolo

alguém diz
a minha vida não é
como imaginava
não era
isto

e a minha vida em
constante construção
desconstrução
não é
isto


mas ainda
inúmeras possibilidades
de cores primárias
a
explodir

Descomunicação

We have heard many times that tired, grimy phrase: 'Failure of communication...' and this phrase has been fixed to my work quite consistently. I believe the contrary. I think that we communicate only too well, in our silence, in what is unsaid, and that what takes place is a continual evasion, desperate rear-guard attempts to keep ourselves to ourselves. Communication is too alarming. To enter into someone else's life is too frightening. To disclose the poverty within us is too fearsome a possibility.

Harold Pinter

Senhor Pinter,
permite-me a discórdia?

quinta-feira, 10 de março de 2011

Curiosidades

Meu namorado era mesmo boa pessoa
e muito bonito
(um mártir)

Escrevia na carta de amor do campo de férias
Estou cheio de saudades tuas
(merda)

Eu lembrei a carta e que disseram
está feliz com a sua namorada
(fiquei contente)

Dela disseram é mesmo boa pessoa
e muito feia
(como um cavalo)

quarta-feira, 9 de março de 2011

Menu du jour

Boa tarde, pediu alimento seco para gato adulto Whiskas vaca mas de momento apenas temos disponível para envio alimento seco para gato adulto Whiskas borrego.
Vê inconveniente na troca?
Um momento, não desligue.
Vou perguntar.

Auto

Se ainda fosse em contramão a 100 à hora na rotunda da Boavista, a sacar peões na avenida ou a conduzir sem roupa, eu não me importava. Agora por meio carro em cima do passeio ou umas horas em contramão a correr para o trabalho? Bah. Assim não vale.

Natureza

A minha gata em cio entusiasma-se à distância com um lustroso negrão.
E na impossibilidade de quebrar a vidraça, protesta rebola-se lambe-se e arrulha como um pombo.
rum rum rum mirrraauuu rum rum rum

terça-feira, 8 de março de 2011

Ode II

O amor abraça-se de noite suaviza-se de manhã
O amor disfarça-se engana-se morde-se troca-se mata-se
O amor permite-se. não o ser.

Ode

O amor arrisca.
O amor petisca.
O amor perece.
Respeitai o prazo de validade.
Livrai-nos de toda a diarreia.
Sentimental.

Declaração de amor ao primeiro-ministro

"Estou apaixonado pelo primeiro-ministro
por todos os primeiros-ministros
e pelos segundos
e pelos terceiros
estou apaixonado por todos os presidentes de Câmara
e de Junta
por todos os benfeitores de obra feita
por todos os que erguem e mandam erguer
estradas, pontes, casas, estádios, fontanários, salões paroquiais
estou apaixonado por todos aqueles que governam, que executam,
que decidem sem pestanejar
por todos aqueles que dão o cu pela causa pública
que se sacrificam pelo bem comum sem nada pedir em troca.
Quero votar entusiasticamente em todos eles
afogá-los em votos
até que se venham
em triunfo
Estou apaixonado pelo primeiro-ministro
quero vê-lo num bacanal
com todos os ministros
e todos os ministérios
a arfar de prazer
a enrabar o défice, o orçamento,
o IVA, a inflação, a recessão
ágil e empreendedor
como um super-homem
Estou apaixonado pelo primeiro-ministro
Quero vê-lo num filme porno."

A. Pedro Ribeiro

Na orla

Está nevoeiro e seguimos pela praia, desviando o caminho um do outro de seixos e pedras maiores, a preocupação e o zelo de sempre. Nas alturas em que te adiantas, eu admiro-te a vitalidade, reconheço-te o jeito de andar, mãos atrás das costas.

No crepúsculo de Verão, o silêncio para a vista das árvores, das flores, adivinha-se o mar ao longe nestes dias.
Quando eu morrer, quero ser cremado. As minhas cinzas ali debaixo daquela oliveira.
Sim. A oliveira que plantámos. Sim.

Está nevoeiro e seguimos pela praia, desviando o caminho um do outro de seixos e pedras maiores, a preocupação e o zelo de sempre. Caminhamos ainda juntos na orla do mar. No meu sonho.

A sentença

Ela diz. Tenho inveja dos casais felizes.
Como uma pedra.
Ele diz. Ninguém está feliz.
O que parece de fora não é verdadeiro.
E sem querer acreditar.
Ela não sabe dizer onde ficou a esperança.
Pelo caminho.