segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Um começo

Joaquim F. acordou com mau hálito e música alegre. Acordou mas não despertou ou vice-versa. Tomou o habitual café amargo com torradas, irritado porque a mulher-a-dias comprou Planta em vez de manteiga outra vez. Bochechou a lavar os dentes, repugnou-se um pouco com os pedaços de pão mastigados no lavatório. Gargarejou. E, enquanto passava a mão pelo queixo avaliando a necessidade de se barbear, ocorreu-lhe o tédio da sua vida de trinta e seis anos feitos. Resolveu deitar-se. Na cama ou ao rio, não se sentia capaz de escolher.

A mulher doméstica

Escrevo com urgência entre a couve-flor, como purgante mais que por talento. Na sopa deito lentilhas, que as dizem ricas em ferro. Projecto fazer algum desporto. Limpo os pingos do chão moderno mas renuncio à compra de máquinas que cozinhem por mim antes dos setenta. Bourgeoise sim mas sans excessos. Fico na dúvida se hei-de ou não ajoutar natas à tarte de legumes. Em francês, couve-flor diz-se chou fleur, o que soa bastante bonito.
E, contemplando os cisnes em Berlim, os bateaux-mouches no Sena ou o arvoredo do meu quintal, não há forma de me convencerem que existe desprazer no ser doméstico.

Memorabilia

As xícaras do café da minha infância eram transparentes e com uns lapidados.
Em alguns jantares da intimidade familiar, o meu Tio repousava na mesa a enxaqueca ou o peso da vida a seguir ao café. O meu Tio era agnóstico - depois talvez ateu, até queria uma cerimónia fúnebre não religiosa como o Prado Coelho e não teve - mas nestas alturas repetia ai meu deus, ai meu deus.
Um dia, encontrei as xícaras da minha infância numa loja de segunda mão. Servi-me o café e repousei o peso da enxaqueca ou dos caracóis sobre a mesa. Só não disse ai meu deus, ai meu deus.

Bident

O meu Tio tinha uma prótese dentária que lhe compunha o riso.
Durante a noite, ficava boiando no copo-dos-dentes, que era cor-de-laranja. De dia, quando andava mais sisudo, andava guardada no bolso das calças, embrulhada no lenço-de-mão, como à espera de ocasião mais cómica. Em altura de seriedade, talvez ao assoar-se, perdeu esses dois dentinhos. Dias mais tarde, enquanto conversavam, a minha Mãe e a minha Tia deram com os dois dentinhos caídos na berma do passeio. Ena! exclamou o meu Tio, abrindo um grande sorriso.

sábado, 8 de outubro de 2011

As formigas

Contra a minha vontade, entraram pelas frinchas da varanda.
Diligentes, prosseguiram em fila até à mesinha-de-cabeceira.
Inútil explicar, não toco trompete e o meu nome não é Boris Vian.

Mas
enquanto conduzo
põe-se um homem de olho de vidro
a galar-me
do banco de trás.