terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Love letter

Eu procurei um papel adequado à minha carta de amor e escolhi uma cartolina azul celeste.
Havia um poema de amor que não me largava a cabeça e merecia uma página macia assim.
Eu pensei demasiado tempo no poema e ele apareceu-me tão ridículo quanto todos os poemas de amor. 

Eu tenho ainda um poema de amor e uma página azul em branco. 
Por mais que me envergonhe, o poema não me larga. 

Um dia em que acorde mais cansada das palavras que nunca me deixam, hei-de escrever o poema de amor e preencher a minha página azul com palavras doces e patéticas.
Depois hei-de dobrar a folha bem dobrada e dar-lhe um fim realmente útil.

Como por exemplo,
para servir de calço à minha secretária manca.

(Love letter
Love let)

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Estrela de sofá

Tu não gostas mesmo de te exercitar no ginásio, pois não?
És como a Scarlett Johansson.
(yeah, right)

Postal de Natal

Tu perguntaste e eu não encontrei as palavras
para suavizar uma notícia tão triste. 
Desviei os olhos e tentei 
esconder as lágrimas como não pude. 
Mentes tão mal, disseste.
Nós tínhamos o pacto da verdade e
um pacto é um pacto, é preciso respeitá-lo. 

E ora forte ora fraca
eu ainda não sei bem
como respeitar
sem sofrimento
esse pacto
da verdade,
o que me ensinaste.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Dieta hipossalina

(se a temperar a sopa
só o sal das suas lágrimas
isso conta como sal?)

Appetizers

O eterno transeunte
Anthony Hopkins
passou por mim
a mastigar satisfeito
uma bucha
(de pão)

sábado, 14 de dezembro de 2013

Small plane

You used to take me up
I watched and learned how to fly
No navigation system beyond our eyes watching

I always went wrong in the same place
Where the river splits towards the sea
That couldn’t possibly be you and me

Sometimes you sleep while I take us home
That’s when I know we really have a home

I never like to land
Getting back up seems impossibly grand
We do it with ease

Danger, I never think of danger
I really am a lucky man
I really am a lucky man flying this small plane

I like it when I take the controls from you
And when you take the control from me

I really am a lucky man
I really am a lucky man flying this small plane
Eyes scan the path ahead and all around


Bill Callahan

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

As palavras

(quando releio febril
as minhas palavras
elas são ainda as mesmas
as mesmas palavras
de esperança)

sábado, 7 de dezembro de 2013

As lágrimas

A minha vizinha está a chorar.

Ao longo dos anos, sem nunca a ter visto
eu aprendi a conhecê-la sem querer:
sei em que trabalha
a música que ouve
as séries e os filmes que vê
habituei-me até à voz grossa e ao calão
da sua melhor amiga
e às jantaradas no terraço com amigos.

Ao longo dos anos, sem nunca a ter visto
eu posso considerá-la uma pessoa
genuína, com bom gosto musical e
extremamente ruidosa:
no sexo
(sobretudo na fase do enamoramento)
no convívio social
e nas conversas privadas.

A minha vizinha está a chorar.

Em soluços altos e entrecortados
(quase como uma gargalhada)

Um choro à sua medida.



Períodos difíceis

Se vier a padecer de hepatotoxicidade
a causa não será o vinho mas
brufen-ben-u-ron-brufen
brufen-ben-u-ron-brufen
brufen-ben-u-ron-brufen
(há períodos difíceis)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Orientação gastronómica

Ela procurou ajuda e trabalhou as dúvidas
Até assumir a sua homossexualidade.
Ele cozinhou-lhe o jantar, preparou-lhe a merenda.
Ela semi-rendida mas fiel à sua natureza
Deixou-se apanhar pelo estômago.

As palavras

Todas as palavras
e frases
e imagens
voltam aos poucos.
(no banho
a ensaboar os pés 
na cama
na meia hora a mais
no caminho
apressada
e sempre
sempre
todas estão cá sempre)

Todas as palavras
e frases 
e imagens 
voltam aos poucos.
(e eu continuo sem saber
o que lhes fazer 
mas fico feliz porque 
se elas voltam
eu ainda  
cá estou
e eu ainda sou
eu)

(um quarto de ternura
um quarto de loucura
um quarto de luxúria
e um quarto
je ne sais quoi)


O silêncio

Nos dias em que sigo mais atrasada
encontro o Anthony Hopkins
no cruzamento para a Trindade.

Eu ensonada e apressada
ele distraído ou a fumar.

É bom manter as coisas assim.
Hannibal Lecter,
tenho ainda amor às coxas.

(as imagens de canibalismo
surgem ligadas a um programa
da BBC sobre um ataque de tubarões)

(o namorado foi comido
a ela levaram-lhe a coxa
e a nádega esquerda)

Um mar vermelho de sangue.
Dia 1 do período menstrual.



quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Para ser mais rigoroso:

Começo habituar-me ao inexacto,
ao impreciso e ao inacabado.
Caio em mim.
Começo  finalmente a sentir–me eu
quando, despudoradamente,
faço como me apetece.

Primavera de São Martinho

Ultimamente evito escrever pela incompatibilidade dos meus pensamentos com a liberdade de expressão. Entendam que, liberdade, cada um tem a que quer.
Acontece que têm chovido telefonemas de infelicidade e desamor. Um a um vão caindo os amores eternos que, com o meu, sustentavam o mundo.
Com o universo aos trambolhões aqui vamos, serenos tanto quanto nos é possível, construindo nos limites da angústia um novo e obrigado futuro. Porque se engana quem crê que o futuro não nos pertence; é a felicidade sonhada a maior perda que podemos sofrer.
Do outro lado do telefone sinto a angústia procurando paz.
Aqui vai:
Eu sou um calhau, nem muito grande nem muito pequeno, à minha medida. Sou como aquelas pedras, mais ou menos da altura de um homem, que existem pelas nossas serras, sempre prontas a rebolar. Mas eu não estou na nossa terra chã: estou na serra alpina onde os ventos frios de nordeste me lembram que tão cedo não vou degelar.
Ultimamente também, um calor primaveril derreteu algumas lascas do gelo que se colava à minha pele. Os musgos, que não são para brincadeiras, rejuvenesceram juntamente com a bicharada microscópica que se animou. Com a bicharada vieram novos passarinhos e a tanta animação veio juntar-se o passaroco que me costumava cantar.
Por vezes custa muito acreditar, mas quem conhece sabe que no Inverno não se sai à serra sem agasalho; os dias que amanhecem soalheiros acabam a nevar.
Estamos no Inverno. Achei por bem aproveitar aquela chuva de que vos falei e, com o frio que está para vir, cristalizar. 
Que quando vier um novo passaroco seja para se fazer cumprir o Verão. Porque aos Invernos frios estão as pedras habituadas.
De qualquer modo, mesmo que assim não seja, sempre teremos na natureza a nossa alma fractal que se renova em cada quatro estações.

Não há Primavera sem Inverno.