sábado, 30 de abril de 2011

Miopia

O consultório do meu oftalmologista é num sétimo andar antigo duma grande avenida. A sala de espera é um quadradinho mal feito, chão atapetado de verde seco e entre cadeiras e poltronas ficamos perto uns dos outros. As janelas têm os mesmos reposteiros creme com flores e nas paredes há os quadros de sempre, ilustrações da medicina antiga. São os mesmos da casa da minha infância, o que mais me impressionava retratava um médico gordo com uma batata quente entre pinças para tratar qualquer coisa à volta do olho do paciente. Lá está ele, em frente a mim, o doente aflito com a quentura da batata (e eu pequenina com ele). Estou rodeada de velhos de óculos, eu uso lentes e ardem-me os olhos. Entra primeiro o sozinho e cá fora o casal quatro olhos muito atento quando atendo o telefone e falo de trabalho. Enquanto ela dormita ele mira-me um pouco pelo canto das lentes. O meu oftalmologista fala alto e ouvimos os três o final da consulta São cinquenta euros. Acha muito? Veja lá, se quiser paga menos. O casal entra e pela demora deve ser dois em um mas não fico muito tempo sozinha. Entram duas velhas saloias que me cumprimentam mas não perdem tempo e logo continuam a conversa animada que eu gostaria de não ouvir. Pela pronúncia devem ser dos lados de Felgueiras e começa a mais matreira, deliciada com as vicissitudes de ter um braço ao peito. Já sabes que num gosto de falatório mas. Inicia o falatório. Do rapazito que morreu como era jeitoso e só tinha binte. cinco. anos. Ela num disse mas eu li no jornal que foi de overdose. Falam nas idas a banhos em Espinho e continua para a outra sobre os passeios que lhe proporcionou Sempre gozastes um buoquadinho. Conta os partos que teve, a Elsa e o Zé, das enfermeiras más que apanhou mas que gritava gritava ora a ver se não haviam de acudir. Apontam finalmente a mesa vazia da secretária. Eu estranhei a sua ausência, meia idade, gorda e de óculos como um mocho ou um texugo enfiada no canto onde bordava almofadas a ponto cruz. Sempre dava a sua achega. Continua a velha Coitada da rapariga, lá se foi. Eu viro-me em sobressalto. Morreu? mas altiva não pergunto nada. Elas percebem mas não se descaem e continuam a taramelice naquela pronúncia de quem fala com a boca cheia de ovos. O que a vizinha gastou nas obras da tijoleira no anexo, de como a outra se desgraçou mais o amante, uma que já enterrou dois maridos e está muito bem de vida. Seguem chupando os dentes com os lábios nas vezes de palito. Não me dão sossego mas finalmente chega a minha vez. Melhor assim ou assim? Não lê as de baixo? Assim piorou não foi? Fica melhor assim? Assim ou assado? Não fica muito diferente pois não? Enfim lá saio cabisbaixa da sala escura, um bom pedaço mais míope.

O nome das coisas

Aborrecida com a distância, ela suspira do país estrangeiro.
- Não ando bem. Falta-me paz de espírito.
- O que queres dizer com paz de espírito?
- Pintar as unhas, ir ao cabeleireiro, fazer a depilação. Já não tiro o buço há dois meses. Essas coisas normais.

Eu vai não vai para contar a história de ontem.
Uma rapariga giríssima de traços fortes com buço.
O amigo do amigo a meter conversa.
- Tens o segundo melhor buço que já vi.

Eu vai não vai não conto, por respeito à paz de espírito.
A rapariga do buço, dizem, virou o buço e foi-se embora.
- O primeiro melhor era o da Frida.

Da montanha com amor

Esta semana foram
dois livros de emigrantes*
uns quantos cigarros
e outros tantos pneus.

Na verdade não gostei muito
do Peixoto em romance
e tomei-me do desalento dum
transmontano de cinquenta e sete anos.

Na verdade é má a nicotina
mas é rica em magnésio
a água pétillante das
Pedras Salgadas.

* A Amante Holandesa (J. Rentes de Carvalho) e Livro (José Luís Peixoto)

Segundo balcão dos bombeiros

Nesse tempo eu já lera as Brontë mas

como era um adolescente retardado

passava a noite em atrozes dilemas

que mais vale: amar, ser doutrem amado?


ainda não descobrira o simples disto

nem o essencial disto que é tão claro

se tudo no amor vem do imprevisto

deitar regras ao jogo pode sair caro


por isso eu amo e sou ou não benquisto

depende do instante bem ou mal azado

amor tem alegria, tem enfado

o happy end é coisa dos cinemas


Fernando Assis Pacheco, em Poemas com cinema

Morte em Veneza

De muitas coisas se pode morrer
em Veneza
De velhice de susto
de peste

ou de beleza

Jorge Sousa Braga, em Poemas com cinema

terça-feira, 26 de abril de 2011

Postal

Porque às vezes ainda subo a Rua da Picaria descendo as escadas do Largo de Mompilher.
Hoje, até à caixa do correio, passeávamos de braço dado com as gaivotas.

Vês, chegou outra vez a Primavera à nossa cidade.
Às vezes, ainda me enches de ternura.
Este postal é para ti.

sábado, 23 de abril de 2011

A troca

Logo à noite dá-me arrozinho de cenoura
com bife
Que eu levo-te bolo de chocolate
e cigarrinhos

(o mesmo que dizer
trocamos beijinhos por
abracinhos?)

Blow up

Ele comenta com o amigo ela está com bom aspecto e feliz.
Ela ouve e ri que mais que o brilho nos olhos ou a tez rosada
o bom aspecto é sobretudo o soutien up com um vestido curto.
Homens. Umas pérolas.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Poetisa pop

Eu não sou poetisa pop
não há vestido que me queime
e a incendiar-me só um creme
que dizem ajuda a resolver
a celulite das coxas

Eu não tenho a perturbação
esquizo-afectiva da poetisa pop
não tomo anti-psicóticos
que me fariam engordar de queixo pró ar
e rabo pró chão

Por isso eu não escrevia
o mongolóide alegra-se
com a viagem de autocarro
a que mais ninguém acha graça*
mas

O mongolóide que tirava e comia
carrapetas na beira
da linha do metro
Desapertou o cinto
desabotoou as calças

Do outro lado da linha
nós ficámos suspensos
Desapertou o cinto
desabotoou-se todo e coçou
a barriga.

(e ninguém caiu à linha
ou sofreu electrocução)

* Adília Lopes, Obra

Adormecer

(com algumas coisas de Maria Teresa Horta)

"Preciso de te tocar
caule
gato
corda
mão
abraço-te
a tua roupa
tu
não te divulgo
o teu nome
os teus olhos azuis
a tua gentileza
espero que os partilhes
com alguém querido
como os partilhaste
comigo
amante querido
que não perco
que não deito fora
os meus amantes
não são Gillettes
(não são de usar
e deitar fora)
embora eu seja
uma poetisa pop
e não tenha amantes
gosto de adormecer
a lembrar-me de ti
de como me sorrias
de como me olhavas
se os meus poemas
contribuíram para isso
são excelentes"

Adília Lopes, Obra

sábado, 16 de abril de 2011

Corvo

"Todas as idades têm um corvo.

Este é o corvo dos meus vinte e cinco anos.
Dá-me, corvo, a luz extinta que sobrevoas,
o entendimento obscuro, a verdade imprevista,
dá-me o corvo camuflado,
a memória entrecortada de luzes contrárias.

Asa de corvo, janela de corvo, memória de corvo. "

Pedro Mexia, Menos por menos

* e o corvo crocita, o que será um pouco mais do que ficar calado.

Húmus

Deram-me ontem três pedidos de desculpa.
E hoje dois obrigado. Nenhum era teu.
Tu em mim crescendo torto
como uma árvore a abater.
Por nós eu regava fertilizava.
Meu peito arrasado de raízes podres
é um cemitério de árvores.
Meu peito esburacado
é húmus.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Bones and born again

"Go now into the hardware
All doubts, doubts and thoughts,
And thoughts are ushered away
Seems like this is the place where I'd like
I would like to spend the rest of my days

Oh, things are so lush and large here
I like it here more
And you fade from me like you know I'm dying
You fade for me like I'm already bones and born again

Things are so lush and large here
Simple and drawn in big white spaces
Curvature, arcs, and just right
I like it here more
Then you fade from me like you know I'm dying
You fade from me like I'm already gone
With these thousand midwives who nudge me onward
As you fade from me now
I'm already bones and born again

Things are so lush and large here
Simple and drawn in big white spaces
Curvature, arcs, and just right
Through layers of light and big white canopies
Who could go see then leave here
Could sentance themselves with what's diminished
You could ignore me, I say
I like it here more
Then you fade from me
Cause you know I'm dying
You fade from me cause I'm already gone
With these thousand midwives who nudge me onward
As you fade from me I'm now already born
Inside
Inside
Inside
Inside
Inside
Inside
Inside
Inside"

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Aforismo do dariz dapado

A minha angústia de existir era uma insolação com síndrome gripal.

(ao que parece, a melancolia está vedada aos cínicos
e as únicas lágrimas permitidas são as que vêm
com espirros e um pingo
mais esverdeado)

-cof-cof-
eu sou dos cínicos.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Um dia

Vamos um dia embriagar-nos
como velhos conhecidos
no crepúsculo dum dia quente
Vamos reconhecer-nos ainda
nos gestos e nos cheiros
E com o passado a alongar-se
O presente impraticável
E o futuro tão tabu
eu não sei de que falaremos
nesse dia.
(há-de safar-nos do embaraço
a rapidez com que o crepúsculo passa)

Do pragmatismo

O rapaz que escrevia
bilhetinhos de amor
és tão bonita
quero conhecer-te
(no verso tentativa do
retrato de perfil)
os bilhetinhos
por baixo da porta
toca e foge,
assinado:
o pedro,
teu admirador secreto.
O rapaz que escrevia
os bilhetinhos
também assobiava às raparigas
da rua e não consta que
se tenha suicidado de
desamor ou que tenha
vertido
duas lágrimas sequer.

Make me blush

What´s the best thing you have ever eaten?
Pussy.
Sorry. I make you lust.

Do amor

Em plena praça, frente à câmara municipal, a rapariga recua na passadeira e corre a abraçá-lo.
Trapalhona, peito aos saltos, bexigosa, massa confusa em beijos lambuzados.
O amor. Está para os crentes.
Ou para os débeis.