segunda-feira, 25 de maio de 2009

Regresso

Isto é um regresso e eu vou em silêncio a ouvir com atenção o barulho da noite. Não é um regresso a casa. Eu não sei o que é casa. Sei a nossa memória. Porto, a cidade onde até os cegos atravessam no sinal vermelho. Sei que haverá gaivotas a miar-me (ou lá o que elas fazem) na varanda. Um Até amanhã! com bigode assim lançado nesta noite quente ou clara. Há qualquer coisa de tropicalmente estranho neste céu. E a tua frase bem bonita. Precisava de desabafar na minha língua.
E eu sem saber o que é casa, com isso sinto com mais força.
Hoje a minha pátria ainda é a minha língua.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Contrariedades

(na árvore dos porquês)

se há uma cabeça
entre as nuvens
porquê umas ancas
que puxam ao chão?

se há um pensamento
rápido rápido
porquê uns caracóis
vagarosos no cabelo?

se há poder de
|concentração|
porquê tantos
estragos acidentais?

se a adolescência
está mais que passada
porquê borbulhas
a melindrar-te o humor?

é melhor contra-atacar
agir depressa
isto é
a revolta do corpo.

(Para X, com graça)

quarta-feira, 20 de maio de 2009

No caminho da luz

"O blog vai iluminando o caminho do seu autor.
É essa a sua virtude."

José Saramago

(ou internauta Zé)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Calcanhar de Aquiles

O meu é a pata de ganso.
(penosa fragilidade)

Não é tarde nem é cedo
para uma bengalinha.

Isso ou então ainda hei-de dar
um pé de dança
na Danceteria Arrasta-o-pé.

Grandes elogios

Cantas muito bem.
Só ainda não encontraste o teu tom.

Foi isto o maior elogio
ou
a mentira mais piedosa?

sábado, 16 de maio de 2009

Resíduo

"De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.
(...)

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
-vazio- de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
(...)

Se de tudo fica um pouco,
mas porque não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
(...)"

Carlos Drummond de Andrade, Tentativa de Exploração e de Interpretação de Estar-no-Mundo

A J, que carrega o peso de ter
um coração puro

(e um pouco de mim?)

Encomenda (in)esperada

Sobre um pacote amarelo.

Entre os teus papéis
Pós de cozinhar
Pós de açúcar
(Entre tantos pós que me mandas
Poderei um dia ser acusada
de narcotráfico?)
Entre os teus papéis e pós,
Cogumelos e bilhetes
Exposições e postais
Lomofotos e Kandinsky

Uma bússola.
Para não perder o norte?

Quadrilha

"João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história."

Carlos Drummond de Andrade, Uma, Duas Argolinhas.

(História de amor
ou banditagem?)

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Fábula do quotidiano

O senhor da rua onde passo apressada todos os dias dá milho aos pombos e rim aos gatos.
Um dia destes, enganou-se, fartou-se, revoltou-se:
Deu milho aos gatos e rim aos pombos.
Eu? Não disse nada.
Quem se intromete na vida alheia, corre o risco de fazer parte dela.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Fora de horas II

Nós, a horas tardias, falamos.
Pela tua voz, estás recuperada.
Sim.
Eu emagreci vinte quilos.
Deixei de fumar.
Não estou mais feliz.

(gostava de poder prometer
que é a última vez que falo aqui
em doenças)

Eu queria dizer-te
que o Marlon Brando
me lembra de ti.
Transgressor
Subversivo

(e houve alturas
em que fomos um espelho
ou
projecções do mesmo
separadas no tempo)

Podemos partilhar
um certo prazer
na decadência?

terça-feira, 12 de maio de 2009

Informação nutricional

Uma couve galega
tem oito vezes mais cálcio
do que um copinho de leite.

(e um dia isto bastou
para eu ter ossos e dentes
mais fortes)

Com a saúde não se brinca.

Maladies sistémiques

Mes cheveux ont poussé
(et mes anches ont grossi)
J´ai les yeux qui brillent
On dit
C´est pour la santé...

(et malgré ça,
l´air sérieux
d´enfant fragile
me manque
toujours un peu)

sábado, 9 de maio de 2009

Processo criativo

"J´ai des doutes j´ai les affres
Hmm hmm hmm
Les affreux de la création."

Serge Gainsbourg

Na curva do horizonte

"A RAPARIGA Fica. Voltará a noite.
O VIAJANTE Vou de viagem. Não sei se chegarei, mas não posso deixar de partir.
CORO I Porque não páras?
CORO II Porque não páras?
O VIAJANTE Não vale a pena ficar sempre no mesmo sítio.
A RAPARIGA Nem quando é belo?
O VIAJANTE Nunca.
CORO I Nunca?
CORO II Nunca?

COROS I e II Mas esta noite houve qualquer coisa diferente.
O VIAJANTE Havia menos estrelas.
COROS I e II Não. Era a lua que brilhava mais.
A RAPARIGA E o meu corpo era um espelho.
CORO I Fica. Voltará a noite.
CORO II Voltará a noite.

Pausa

O VIAJANTE Tenho de andar mais.
CORO I Mas estás triste.
CORO II Estás triste.
O VIAJANTE O horizonte é uma curva.
CORO I E depois?
CORO II E depois?"

Fiama Hasse Pais Brandão, Em cada pedra um voo imóvel.

(Na curva do horizonte
andemos devagar
por causa dos enjoos)
E depois?

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Desengates

Eu não sei muitas frases de engate.

Nunca percebi como é que qualquer coisa como
Do you like my tight T-shirt?
pode juntar duas pessoas durante tantos anos.
Deve estar a escapar-me
alguma destreza sentimental.

Ou então serei mais de desengates.

As melhores frases estão em músicas.

Um Lou Reed menos fresco
A lamentar-se
Who thought this could happen to us
when we first went to bed

Não conta.
Nem casamentos falhados.

Um desengate é ligeiro
(igual a um engate só que ao contrário)

Sorry baby, but except
Bob Dylan

we have nothing in common.

(dá vontade de mandar à fava alguém
pelo prazer de uma frase assim)

É Maio e está calor?
É o tempo dos desengates.