segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Comédias e provérbios (o regresso)

Gato escaldado (ou gata)
de água fria tem medo

À saída do Minipreço, há grande aparato envolvendo uma senhora loira carregada de banhas e de sacos (colérica), um jovem musculado (muito contestário), a polícia de trânsito (indiferente ou diligente) e um veículo a ser rebocado.
Eu meto as waffles ao saco e sigo (lestinha e de fininho) a verificar o 78-98-PM, tão bem estacionado em frente a uma rampa, mesmo à porta de casa.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Fromagerie

À custa de muito amor pôs-se
o meu frigorífico uma queijaria
enquanto
embalado e ignorado murcha o pavo fatiado
do chèvre ao parmigianno
eu, que não gostava de queijo,
devoro em tostas
o triângulo brie aos nacos.

Espero é que
de tanto queijo gordo
não se me inchem de tal forma
as ancas
que se esqueça de mim
o meu amor e
que valha ainda por minha
elegância
o pão saúde
que é para
diabéticos.

Receitas de bolos

Começa com o
Bolo Inglês
na letra bem desenhada de R e G
entre palavras da minha Tia
Bolo Delicioso
Blater torte (trema no a)
etc
Há os
Palitos de Noz
na letra elaborada da Avó
(tocava piano e falava francês)
depois os gatafunhos da Mãe,
uma mancha de gordura,
o
Bolo Bom
Bolo Cor-de-rosa
o seu
Pudim Abade Priscos
(receita do restaurante íris que
assusta com os 15 ovos, 2 são inteiros
e 1 pouco de carne de porco)

Finalmente,
antes ainda do palhaço de roupa remendada
a minha letra de primária
anuncia

queques de chocolate
põe-se uma tigela com chocolate e deita-se côco
e açúcar e 3 ovos
depois põe-se no frigurífico em formas de papel
depois tira-se e come-se.

Frigurífico?
Frigorífico.
(corrige a minha caligrafia de primária
mais redonda e culta
na página seguinte)

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Mini mini

O homem da gabardine, moderno e diligente:
- Queira informar os seus superiores que esta salada está fora de prazo.
O rapaz da caixa:
(pip-pip)
- Que dia é hoje?
(pip-pip)
- 7.
- Txi.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Um começo

Joaquim F. acordou com mau hálito e música alegre. Acordou mas não despertou ou vice-versa. Tomou o habitual café amargo com torradas, irritado porque a mulher-a-dias comprou Planta em vez de manteiga outra vez. Bochechou a lavar os dentes, repugnou-se um pouco com os pedaços de pão mastigados no lavatório. Gargarejou. E, enquanto passava a mão pelo queixo avaliando a necessidade de se barbear, ocorreu-lhe o tédio da sua vida de trinta e seis anos feitos. Resolveu deitar-se. Na cama ou ao rio, não se sentia capaz de escolher.

A mulher doméstica

Escrevo com urgência entre a couve-flor, como purgante mais que por talento. Na sopa deito lentilhas, que as dizem ricas em ferro. Projecto fazer algum desporto. Limpo os pingos do chão moderno mas renuncio à compra de máquinas que cozinhem por mim antes dos setenta. Bourgeoise sim mas sans excessos. Fico na dúvida se hei-de ou não ajoutar natas à tarte de legumes. Em francês, couve-flor diz-se chou fleur, o que soa bastante bonito.
E, contemplando os cisnes em Berlim, os bateaux-mouches no Sena ou o arvoredo do meu quintal, não há forma de me convencerem que existe desprazer no ser doméstico.

Memorabilia

As xícaras do café da minha infância eram transparentes e com uns lapidados.
Em alguns jantares da intimidade familiar, o meu Tio repousava na mesa a enxaqueca ou o peso da vida a seguir ao café. O meu Tio era agnóstico - depois talvez ateu, até queria uma cerimónia fúnebre não religiosa como o Prado Coelho e não teve - mas nestas alturas repetia ai meu deus, ai meu deus.
Um dia, encontrei as xícaras da minha infância numa loja de segunda mão. Servi-me o café e repousei o peso da enxaqueca ou dos caracóis sobre a mesa. Só não disse ai meu deus, ai meu deus.

Bident

O meu Tio tinha uma prótese dentária que lhe compunha o riso.
Durante a noite, ficava boiando no copo-dos-dentes, que era cor-de-laranja. De dia, quando andava mais sisudo, andava guardada no bolso das calças, embrulhada no lenço-de-mão, como à espera de ocasião mais cómica. Em altura de seriedade, talvez ao assoar-se, perdeu esses dois dentinhos. Dias mais tarde, enquanto conversavam, a minha Mãe e a minha Tia deram com os dois dentinhos caídos na berma do passeio. Ena! exclamou o meu Tio, abrindo um grande sorriso.

sábado, 8 de outubro de 2011

As formigas

Contra a minha vontade, entraram pelas frinchas da varanda.
Diligentes, prosseguiram em fila até à mesinha-de-cabeceira.
Inútil explicar, não toco trompete e o meu nome não é Boris Vian.

Mas
enquanto conduzo
põe-se um homem de olho de vidro
a galar-me
do banco de trás.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Do bairro com amor

O bêbado encostado
na mão o tetra pak
(vinho de mesa)
mira quem passa.

Prrrrruuuuuu.
Peidou-se.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Dia um

A re(vira)volta

Eu espero jeito maior para o resto
que o jeitinho na torneira que
ping.
ping.ping.ping.ping.ping.ping.ping.ping.
ping.ping.ping.ping.ping.ping.ping.ping.
ping........ ping...........ping............ping.............
pinga.

A minha cozinha um quadrado vazio
o terraço foi aglomerado de móveis
onde se ajeitam gatos
a dormir
e donde o frigorífico
suando
contempla ainda
a torre dos Clérigos.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Blaise Cendrars a Féla Poznanska

Sê bem-vinda. Há muito que ando fugido
do mundo, de celas antigas, domésticas,
por isso sê bem-vinda ao lugar da fuga.
Dou-te a minha mão para que sintas
o nervo nómada, a desmesura de quem parte
em aventura, o tempo que se cumpre
em cada travessia. Dou-te o meu braço
direito porque é nele que o coração
transita, como um comboio que parte
e retorna para poder voltar a partir.

Sê bem-vinda à fome, à miséria,
à solidão que a todos chega e finalmente
pergunta: que fazes aqui? Respondo
à solidão que faço o meu tempo,
nenhum relógio poderá marcar a distância,
nenhum ponteiro indicará o caminho,
seguiremos por onde lutar for resposta,
seremos a espuma dos dias mais belos,
das horas mais livres. Tu e eu, de mãos
dadas, dançando o tempo com fervor,
sem nenhum ruído que nos impeça
a poesia, a música, a liberdade.

Repara: os homens sem escudos
precisam abrigar-se de si próprios,
tudo podem contra o mundo, nenhuma
estação lhes estacionará a fuga.
Talvez descubram um dia na berma
de uma estrada batida, entre o mato
da floresta, numa duna desértica, talvez
aí descubram a sombra que os proteja
do calor insuportável que sobre eles paira
logo à nascença. Trazem dentro uma erupção
contida que só a paciência da espera
poderá suportar. E tu foste essa paciência.

És a mais bela desordem que me aconteceu.
Sentado na estação a observar
famílias inteiras em trânsito, penso
naquele impulso que um dia me impeliu
para fora das quatro paredes de um
quarto frio. Saltei pela janela, corri
sem direcção, corri para onde me levasse
a direcção de apenas correr. O meu destino
eras tu. Tu, pedaço de terra onde ergui
a única morada que me serviu de abrigo.

Henrique Bento Fialho, A dança das feridas

domingo, 3 de julho de 2011

Identidade

Para lá da porta, ao som das mornas, o vizinho da frente explica ao senhor da mercearia que eu sou uma menina com o cabelo assim e que não páro muito em casa.

domingo, 19 de junho de 2011

Pró-fem

Em defesa da ética ou do género, eu argumento.
- Não é justo. Estás a dar-lhe esperanças.
- Olha. Se dei, já lhas tirei todas.

Homens.
Uns básicos.
Outros práticos.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Da resistência

Do quarto escuro salvava-me a Joaquina pela janela do terraço
da malvadeza e sesta à força das Ermelindas.

A máquina de secar tinha a tampa partida pela gordura
e preguiça da Ermelinda de bata preta que era viúva.

Depois do almoço eu soltava o novelo do cabelo grisalho da Joaquina
Fazia-lhe tranças e dizia Ficas assim agora, estás mais bonita.

E das aulas ensinava-lhe o abecedário e marcava TPCs que ela fingia
esquecer mas sem ler ou escrever nunca se enganou nos números.

Enquanto isso do outro lado não resistem já os vietcongs mas
sofrem ainda os tibetanos e nós estamos ainda por vezes
entre muralhas.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Lição doméstica nº1

Se te dizem que a pescada é para cozer.
Coze-a. Não inventes.
Cada um é para o que nasce.
(ou para o que morre)

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Das palavras

Tabucchi fala de O´Neill, amigo, e como se conheceram. *
O Alexandre estava sentado à mesa de sua casa e almoçava sozinho, seu lugar único na mesa posto a rigor.
Dentro do prato havia uma lata de sardinhas.
Ele comia sardinhas de uma lata dentro do prato. Eu aproximei-me e ele perguntou:
- Queres provar sardinhas decapitadas?

(e para Tabucchi foi este o princípio de um grande entendimento)

* em Tomai lá do O´Neill, de Fernando Lopes, foi qualquer coisa assim.

Provérbio do quotidiano

Não cuspas para o ar nem digas
jamais a nada e nem sequer
a uma estúpida franja que
mais dia menos dia ela pode
cair-te na testa.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Questão de família

Ao telefone falamos da terra, das eleições, do jantar e de vernizes.
E tu que agora até está na moda pintar uma unha de cada cor.
E que está na moda mas fora de questão, não queres parecer uma Barbie geriátrica.

Uma razão

Casara certo indivíduo, cego de um olho, com uma guapa rapariga, que julgava honrada, mas que infelizmente -para ele- já não tinha os três vinténs.
Resultou de tal descoberta acalorada discussão, e a moça, não podendo ocultar a perda, disse-lhe por fim:
- Parece-te que, apesar de semelhante falta, valho menos que tu, com um olho de menos?
- Mas este defeito foi resultado por uma queda, quando era pequeno...
- E o meu por uma foda, quando já era crescida...

em O pauzinho do matrimónio, almanaque perpétuo, ilustrado por Rafael Bordalo Pinheiro.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Under the weather

Ai, que chato, que maçada, outra vez.
Dizem que a nuvem sobrevoa a Escócia.
E, de verdade, não seria até mau.
Mais uns quantos dias do lado de lá.

sábado, 30 de abril de 2011

Miopia

O consultório do meu oftalmologista é num sétimo andar antigo duma grande avenida. A sala de espera é um quadradinho mal feito, chão atapetado de verde seco e entre cadeiras e poltronas ficamos perto uns dos outros. As janelas têm os mesmos reposteiros creme com flores e nas paredes há os quadros de sempre, ilustrações da medicina antiga. São os mesmos da casa da minha infância, o que mais me impressionava retratava um médico gordo com uma batata quente entre pinças para tratar qualquer coisa à volta do olho do paciente. Lá está ele, em frente a mim, o doente aflito com a quentura da batata (e eu pequenina com ele). Estou rodeada de velhos de óculos, eu uso lentes e ardem-me os olhos. Entra primeiro o sozinho e cá fora o casal quatro olhos muito atento quando atendo o telefone e falo de trabalho. Enquanto ela dormita ele mira-me um pouco pelo canto das lentes. O meu oftalmologista fala alto e ouvimos os três o final da consulta São cinquenta euros. Acha muito? Veja lá, se quiser paga menos. O casal entra e pela demora deve ser dois em um mas não fico muito tempo sozinha. Entram duas velhas saloias que me cumprimentam mas não perdem tempo e logo continuam a conversa animada que eu gostaria de não ouvir. Pela pronúncia devem ser dos lados de Felgueiras e começa a mais matreira, deliciada com as vicissitudes de ter um braço ao peito. Já sabes que num gosto de falatório mas. Inicia o falatório. Do rapazito que morreu como era jeitoso e só tinha binte. cinco. anos. Ela num disse mas eu li no jornal que foi de overdose. Falam nas idas a banhos em Espinho e continua para a outra sobre os passeios que lhe proporcionou Sempre gozastes um buoquadinho. Conta os partos que teve, a Elsa e o Zé, das enfermeiras más que apanhou mas que gritava gritava ora a ver se não haviam de acudir. Apontam finalmente a mesa vazia da secretária. Eu estranhei a sua ausência, meia idade, gorda e de óculos como um mocho ou um texugo enfiada no canto onde bordava almofadas a ponto cruz. Sempre dava a sua achega. Continua a velha Coitada da rapariga, lá se foi. Eu viro-me em sobressalto. Morreu? mas altiva não pergunto nada. Elas percebem mas não se descaem e continuam a taramelice naquela pronúncia de quem fala com a boca cheia de ovos. O que a vizinha gastou nas obras da tijoleira no anexo, de como a outra se desgraçou mais o amante, uma que já enterrou dois maridos e está muito bem de vida. Seguem chupando os dentes com os lábios nas vezes de palito. Não me dão sossego mas finalmente chega a minha vez. Melhor assim ou assim? Não lê as de baixo? Assim piorou não foi? Fica melhor assim? Assim ou assado? Não fica muito diferente pois não? Enfim lá saio cabisbaixa da sala escura, um bom pedaço mais míope.

O nome das coisas

Aborrecida com a distância, ela suspira do país estrangeiro.
- Não ando bem. Falta-me paz de espírito.
- O que queres dizer com paz de espírito?
- Pintar as unhas, ir ao cabeleireiro, fazer a depilação. Já não tiro o buço há dois meses. Essas coisas normais.

Eu vai não vai para contar a história de ontem.
Uma rapariga giríssima de traços fortes com buço.
O amigo do amigo a meter conversa.
- Tens o segundo melhor buço que já vi.

Eu vai não vai não conto, por respeito à paz de espírito.
A rapariga do buço, dizem, virou o buço e foi-se embora.
- O primeiro melhor era o da Frida.

Da montanha com amor

Esta semana foram
dois livros de emigrantes*
uns quantos cigarros
e outros tantos pneus.

Na verdade não gostei muito
do Peixoto em romance
e tomei-me do desalento dum
transmontano de cinquenta e sete anos.

Na verdade é má a nicotina
mas é rica em magnésio
a água pétillante das
Pedras Salgadas.

* A Amante Holandesa (J. Rentes de Carvalho) e Livro (José Luís Peixoto)

Segundo balcão dos bombeiros

Nesse tempo eu já lera as Brontë mas

como era um adolescente retardado

passava a noite em atrozes dilemas

que mais vale: amar, ser doutrem amado?


ainda não descobrira o simples disto

nem o essencial disto que é tão claro

se tudo no amor vem do imprevisto

deitar regras ao jogo pode sair caro


por isso eu amo e sou ou não benquisto

depende do instante bem ou mal azado

amor tem alegria, tem enfado

o happy end é coisa dos cinemas


Fernando Assis Pacheco, em Poemas com cinema

Morte em Veneza

De muitas coisas se pode morrer
em Veneza
De velhice de susto
de peste

ou de beleza

Jorge Sousa Braga, em Poemas com cinema

terça-feira, 26 de abril de 2011

Postal

Porque às vezes ainda subo a Rua da Picaria descendo as escadas do Largo de Mompilher.
Hoje, até à caixa do correio, passeávamos de braço dado com as gaivotas.

Vês, chegou outra vez a Primavera à nossa cidade.
Às vezes, ainda me enches de ternura.
Este postal é para ti.

sábado, 23 de abril de 2011

A troca

Logo à noite dá-me arrozinho de cenoura
com bife
Que eu levo-te bolo de chocolate
e cigarrinhos

(o mesmo que dizer
trocamos beijinhos por
abracinhos?)

Blow up

Ele comenta com o amigo ela está com bom aspecto e feliz.
Ela ouve e ri que mais que o brilho nos olhos ou a tez rosada
o bom aspecto é sobretudo o soutien up com um vestido curto.
Homens. Umas pérolas.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Poetisa pop

Eu não sou poetisa pop
não há vestido que me queime
e a incendiar-me só um creme
que dizem ajuda a resolver
a celulite das coxas

Eu não tenho a perturbação
esquizo-afectiva da poetisa pop
não tomo anti-psicóticos
que me fariam engordar de queixo pró ar
e rabo pró chão

Por isso eu não escrevia
o mongolóide alegra-se
com a viagem de autocarro
a que mais ninguém acha graça*
mas

O mongolóide que tirava e comia
carrapetas na beira
da linha do metro
Desapertou o cinto
desabotoou as calças

Do outro lado da linha
nós ficámos suspensos
Desapertou o cinto
desabotoou-se todo e coçou
a barriga.

(e ninguém caiu à linha
ou sofreu electrocução)

* Adília Lopes, Obra

Adormecer

(com algumas coisas de Maria Teresa Horta)

"Preciso de te tocar
caule
gato
corda
mão
abraço-te
a tua roupa
tu
não te divulgo
o teu nome
os teus olhos azuis
a tua gentileza
espero que os partilhes
com alguém querido
como os partilhaste
comigo
amante querido
que não perco
que não deito fora
os meus amantes
não são Gillettes
(não são de usar
e deitar fora)
embora eu seja
uma poetisa pop
e não tenha amantes
gosto de adormecer
a lembrar-me de ti
de como me sorrias
de como me olhavas
se os meus poemas
contribuíram para isso
são excelentes"

Adília Lopes, Obra

sábado, 16 de abril de 2011

Corvo

"Todas as idades têm um corvo.

Este é o corvo dos meus vinte e cinco anos.
Dá-me, corvo, a luz extinta que sobrevoas,
o entendimento obscuro, a verdade imprevista,
dá-me o corvo camuflado,
a memória entrecortada de luzes contrárias.

Asa de corvo, janela de corvo, memória de corvo. "

Pedro Mexia, Menos por menos

* e o corvo crocita, o que será um pouco mais do que ficar calado.

Húmus

Deram-me ontem três pedidos de desculpa.
E hoje dois obrigado. Nenhum era teu.
Tu em mim crescendo torto
como uma árvore a abater.
Por nós eu regava fertilizava.
Meu peito arrasado de raízes podres
é um cemitério de árvores.
Meu peito esburacado
é húmus.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Bones and born again

"Go now into the hardware
All doubts, doubts and thoughts,
And thoughts are ushered away
Seems like this is the place where I'd like
I would like to spend the rest of my days

Oh, things are so lush and large here
I like it here more
And you fade from me like you know I'm dying
You fade for me like I'm already bones and born again

Things are so lush and large here
Simple and drawn in big white spaces
Curvature, arcs, and just right
I like it here more
Then you fade from me like you know I'm dying
You fade from me like I'm already gone
With these thousand midwives who nudge me onward
As you fade from me now
I'm already bones and born again

Things are so lush and large here
Simple and drawn in big white spaces
Curvature, arcs, and just right
Through layers of light and big white canopies
Who could go see then leave here
Could sentance themselves with what's diminished
You could ignore me, I say
I like it here more
Then you fade from me
Cause you know I'm dying
You fade from me cause I'm already gone
With these thousand midwives who nudge me onward
As you fade from me I'm now already born
Inside
Inside
Inside
Inside
Inside
Inside
Inside
Inside"

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Aforismo do dariz dapado

A minha angústia de existir era uma insolação com síndrome gripal.

(ao que parece, a melancolia está vedada aos cínicos
e as únicas lágrimas permitidas são as que vêm
com espirros e um pingo
mais esverdeado)

-cof-cof-
eu sou dos cínicos.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Um dia

Vamos um dia embriagar-nos
como velhos conhecidos
no crepúsculo dum dia quente
Vamos reconhecer-nos ainda
nos gestos e nos cheiros
E com o passado a alongar-se
O presente impraticável
E o futuro tão tabu
eu não sei de que falaremos
nesse dia.
(há-de safar-nos do embaraço
a rapidez com que o crepúsculo passa)

Do pragmatismo

O rapaz que escrevia
bilhetinhos de amor
és tão bonita
quero conhecer-te
(no verso tentativa do
retrato de perfil)
os bilhetinhos
por baixo da porta
toca e foge,
assinado:
o pedro,
teu admirador secreto.
O rapaz que escrevia
os bilhetinhos
também assobiava às raparigas
da rua e não consta que
se tenha suicidado de
desamor ou que tenha
vertido
duas lágrimas sequer.

Make me blush

What´s the best thing you have ever eaten?
Pussy.
Sorry. I make you lust.

Do amor

Em plena praça, frente à câmara municipal, a rapariga recua na passadeira e corre a abraçá-lo.
Trapalhona, peito aos saltos, bexigosa, massa confusa em beijos lambuzados.
O amor. Está para os crentes.
Ou para os débeis.

sábado, 19 de março de 2011

Sinceridade e bom humor

A rapariga apaixonada, lamenta.
Ele tem o cabelo comprido.
E então, já lhe disseste?
Sim. Nem penses que corto o cabelo por tua causa.
Mmm. Um bom começo.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Ceci

Há dois modelos de texto autobiográfico: a autobiografia em directo e a autobiografia em diferido. Aqui pratica-se o segundo.

Pedro Mexia, na Lei Seca.

(ceci n´est pas une pipe
ou isto não é um diário)

quarta-feira, 16 de março de 2011

Questão de conta

Do que abraçaste terão que te abraçar em dobro.
Do que tentaste terão que tentar em dobro.
Do que deste darás metade.
O passado duplica a exigência.
Do que em ti morreu nada sobrou.
Vezes quanto. Vezes tanto.

Evangelização

A senhora diz que o mundo está a acabar.
Eu concordo e isso deve ser o meu sinal.
Ela diz que é testemunha de Jeová.
E que há uma pessoa que a ajuda a compreender e a esperar o fim do mundo.
Eu apresso-a, vá vá.
Ela promete ou ameaça, para a próxima falaremos com mais vagar.
(A minha alma penada cheira-se a léguas?)

terça-feira, 15 de março de 2011

Na fruteira

Senhor Cézanne, equivocou-se
A fruteira é uma natureza viva
onde medram bolores de tangerinas murchas
Tinha razão o doutor Fleming.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Neurose

Depois da corrida desenfreada
de saltar aos quadros da parede
e às andorinhas do Bordallo

Depois da pequena crise histérica
jaz no tapete a psicogata
em estado pós-ictal

Menina de coro

X. lamentando não lhe dar o álcool uma safadeza de corista barata.
Espero que gostes de Smiths.
Por mim já punha a tua namorada em coma.

Imperador

Houve aquela vez em que nos zangámos.

Tu compraste um bombom, o rapaz era giro, eu ri-me do lado e ele deu-te dois.
Nós éramos duas, eu reclamei o meu bombom.
E tu, és sempre a mesma! Por é que tens que achar que é sempre tudo para ti? Fui eu que pedi, se ele mos deu a mim! a mim! porque haveria de ser um para ti?
Eu de boca cheia, que o bombom era Imperador, a mastigar depressa e de pirraça o troféu.

Havíamos de concordar, gostamos muito de chocolate.
E toda a questão se deu porque o rapaz era giro.

Comédias e provérbios: nas linhas tortas

Em resposta à minha agressão, chega a notificação pelo correio.
Em letra de escola primária, a descrição sumária: porquanto a infractora estacionou o veículo em passeio impedindo a passagem de peões. Com os melhores cumprimentos, o comandante da D.T., F. Evangelista.
Deus escreve certo por linhas tortas?
A justiça tarda mas sempre chega?

De qualquer das formas, é reconfortante saber que por aí anda um F. qualquer atento à minha evangelização.

domingo, 13 de março de 2011

Na balança

Dieta? Desporto?
Não. Cólon irritável.
(fiu fiu)

sábado, 12 de março de 2011

Fumar mata

Fumar mata. Com cinco inconclusos cigarros
morrerei decerto doutro motivo.
Cigarros escondidos, obrigatórios, demonstrativos, sexuais,
cigarros ocultos atrás de livros, fumados
na casa de banho que o vento depois não drenava,
cigarros amargos e engasgados na garganta,
comprados, deitados fora,
cigarros infrutíferos como esses anos em tudo o mais,
nem rodapé biográfico mas erupção sociológica.
Fumar mata. De não fumar nada direi.



Pedro Mexia
Vida Oculta
Relógio D´Água, 2004

Carta sem selo

Caro senhor
Eu não sei como lhe diga,
como me explicar,
mas habituada a vê-lo seguro
tão eloquente e bem falante,
vê-lo assim, a dar-se à ternura,
eu não sei que me parece
o encontrá-lo tão sentimental.
Olhe, é piegas, embaraçoso,
como surpreendê-lo ao espelho
vestindo a roupa da sua mãe
achá-lo com um buraco na meia
ou então topar-lhe
um selinho na cueca.

a última vez

organizei uma festa para a qual
convidei apenas os meus
amigos suicidas. fazemos tudo como
se fosse a última vez

queres vir ao meu inferno

gostava de te mostrar as pequenas
cabeças falantes guardadas nos lugares mais
escuros da minha casa. gostava que
ouvisses o que dizem

os mortos, encostados às paredes e com
problemas de equilíbrio, disciplinam-se
lentamente. vês a minha casa

vou buscar o meu coração. guardei-o aqui
algures e, por ti, tenho a certeza, vale a
pena voltar a encontrá-lo e correr todos os
riscos de novo

cuidado com o cão, não morde, mas é
pesado e pode tirar-te o fôlego com as
patas no peito e depois vou querer
beijar-te

achas que podes não morrer antes

há champanhe e bolo de chocolate


valter hugo mãe

folclore íntimo
Cosmorama Edições, 2008

(cuidado com o cão
não morde mas pode
tirar-te o fôlego
e depois
há bolo de chocolate
e eu posso ainda
querer beijar-te
por isso
achas que podes
não morrer antes?)

Questão de justiça

o poeta arredondado
quase careca
falava baixinho
com voz doce
eu confesso
agi por despeito
julguei pedante
até reconhecer
no seu talento
origem humilde
até admiti
as minúsculas
não lhe vão mal
e não corei
com o elogio
de chamar-lhe
o poeta.

Cacos do cio

À custa da natureza dengosa
está a minha casa a tornar-se
bastante minimalista.

Espaço moderno onde não pode
caminhar descalço sem ferir-se
nos cacos do cio.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Cores primárias

ele diz
encontrei-te
acabou-se o teu sossego
dizes mata
e eu esfolo

alguém diz
a minha vida não é
como imaginava
não era
isto

e a minha vida em
constante construção
desconstrução
não é
isto


mas ainda
inúmeras possibilidades
de cores primárias
a
explodir

Descomunicação

We have heard many times that tired, grimy phrase: 'Failure of communication...' and this phrase has been fixed to my work quite consistently. I believe the contrary. I think that we communicate only too well, in our silence, in what is unsaid, and that what takes place is a continual evasion, desperate rear-guard attempts to keep ourselves to ourselves. Communication is too alarming. To enter into someone else's life is too frightening. To disclose the poverty within us is too fearsome a possibility.

Harold Pinter

Senhor Pinter,
permite-me a discórdia?

quinta-feira, 10 de março de 2011

Curiosidades

Meu namorado era mesmo boa pessoa
e muito bonito
(um mártir)

Escrevia na carta de amor do campo de férias
Estou cheio de saudades tuas
(merda)

Eu lembrei a carta e que disseram
está feliz com a sua namorada
(fiquei contente)

Dela disseram é mesmo boa pessoa
e muito feia
(como um cavalo)

quarta-feira, 9 de março de 2011

Menu du jour

Boa tarde, pediu alimento seco para gato adulto Whiskas vaca mas de momento apenas temos disponível para envio alimento seco para gato adulto Whiskas borrego.
Vê inconveniente na troca?
Um momento, não desligue.
Vou perguntar.

Auto

Se ainda fosse em contramão a 100 à hora na rotunda da Boavista, a sacar peões na avenida ou a conduzir sem roupa, eu não me importava. Agora por meio carro em cima do passeio ou umas horas em contramão a correr para o trabalho? Bah. Assim não vale.

Natureza

A minha gata em cio entusiasma-se à distância com um lustroso negrão.
E na impossibilidade de quebrar a vidraça, protesta rebola-se lambe-se e arrulha como um pombo.
rum rum rum mirrraauuu rum rum rum

terça-feira, 8 de março de 2011

Ode II

O amor abraça-se de noite suaviza-se de manhã
O amor disfarça-se engana-se morde-se troca-se mata-se
O amor permite-se. não o ser.

Ode

O amor arrisca.
O amor petisca.
O amor perece.
Respeitai o prazo de validade.
Livrai-nos de toda a diarreia.
Sentimental.

Declaração de amor ao primeiro-ministro

"Estou apaixonado pelo primeiro-ministro
por todos os primeiros-ministros
e pelos segundos
e pelos terceiros
estou apaixonado por todos os presidentes de Câmara
e de Junta
por todos os benfeitores de obra feita
por todos os que erguem e mandam erguer
estradas, pontes, casas, estádios, fontanários, salões paroquiais
estou apaixonado por todos aqueles que governam, que executam,
que decidem sem pestanejar
por todos aqueles que dão o cu pela causa pública
que se sacrificam pelo bem comum sem nada pedir em troca.
Quero votar entusiasticamente em todos eles
afogá-los em votos
até que se venham
em triunfo
Estou apaixonado pelo primeiro-ministro
quero vê-lo num bacanal
com todos os ministros
e todos os ministérios
a arfar de prazer
a enrabar o défice, o orçamento,
o IVA, a inflação, a recessão
ágil e empreendedor
como um super-homem
Estou apaixonado pelo primeiro-ministro
Quero vê-lo num filme porno."

A. Pedro Ribeiro

Na orla

Está nevoeiro e seguimos pela praia, desviando o caminho um do outro de seixos e pedras maiores, a preocupação e o zelo de sempre. Nas alturas em que te adiantas, eu admiro-te a vitalidade, reconheço-te o jeito de andar, mãos atrás das costas.

No crepúsculo de Verão, o silêncio para a vista das árvores, das flores, adivinha-se o mar ao longe nestes dias.
Quando eu morrer, quero ser cremado. As minhas cinzas ali debaixo daquela oliveira.
Sim. A oliveira que plantámos. Sim.

Está nevoeiro e seguimos pela praia, desviando o caminho um do outro de seixos e pedras maiores, a preocupação e o zelo de sempre. Caminhamos ainda juntos na orla do mar. No meu sonho.

A sentença

Ela diz. Tenho inveja dos casais felizes.
Como uma pedra.
Ele diz. Ninguém está feliz.
O que parece de fora não é verdadeiro.
E sem querer acreditar.
Ela não sabe dizer onde ficou a esperança.
Pelo caminho.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Cozido

O peixe esverdeou.
Culparam-se os vegetais.

(que é como quem diz
força das circunstâncias
ou
mea culpa)

Pedra em expansão

Diz não são os anos que passam
é a pedra

Não o tempo
o que por mim passa
mas ela
que somente acompanha

Diz não passam anos
para a minha idade
só uma pedra está

Fiama Hasse Pais Brandão, Âmago antologia

Também da chuva

Também da chuva
havemos de falar
e onde cai
diremos que uma queda
diferente
nos faz dizer da chuva
que é uma queda muda

Calada
quando só cai
por nós
quando cai


Também no poema
é nossa
só porque cai
muda
como cai no solo
a chuva

Fiama Hasse Pais Brandão, Âmago antologia

Bando à parte

o amante inicial diz Tempo é o que mais tenho
entre a playstation insulina TV cabo
a mentira desculpável na sofreguidão de amante inicial

entusiasmados de pressa outros amantes
transfiro-me amanhã da avenida ao hospital
um instante então se for escutando música
ta-nanana-na

E de todo o paradoxo
De homem sem PPR
mas com os impostos pagos
Vamos pisar obras de arte
mas com pés descalços


E de todo o paradoxo
Do medo da rotina
ao combinado nº 6
com sangria todo Sábado
Vamos fugir hoje
Vamos ver teatro

E de todo o paradoxo
eu nunca tive asas nas costas
que fossem realmente
minhas ou trazidas de casa
Ser fora-da-lei mas seguindo à risca
belas convenções

E de todo o paradoxo
impossibilidade ou presunção
Peut-être ça va mieux qu´on
reste celibataire?

As mesmas saudades II

Para L

O rapaz cresceu e é quase um homenzinho.
Quando caço. Vou sozinho. Caço perdizes. Para comer.
Diz foda-se foda-se sem olhar que há raparigas.
A graça é que estás tu também no rapazinho.
Nada a fazer. A loucura é familiar.
E quando rimos de maldade. Ele diz.
Estamos a rir-nos da mesma coisa, não estamos?
Sim, estamos. E estás bem bonito rapazinho.
Eu não sei o que nos aproximou no início.
A ideia de sermos primos nunca convenceu ninguém.
Talvez a ternura que entendemos no desprendimento.
Comovemo-nos com velhotes que se apaixonam.
E ao dizeres As mesmas saudades.
Eu sei que cabem aí de facto.
Muitas saudades.

As mesmas saudades

Para I

Na nossa infância, havia piqueniques à chuva com petiscos na mala velha e nós encarrapitadas no muro de guarda-chuva na ramada. Saltávamos os telhados atrás de gatos e houve aquela vez em que tinhas a perna partida e fugimos do vizinho a toda a pressa, tu partindo todas as telhas com o pé coxinho. Pelo valgismo fisiológico e que nunca desapareceu, não escapou um dia em que não tropeçasse sem esfolar os joelhos quando te visitava. Na tarde em que estivemos a brincar no tanque onde morreu o teu cachorro afogado quando aparecêmos nuas e enlameadas levámos palmada no rabo e nunca soubemos onde deixámos as cuecas e o resto da roupa. Lembro-me que foi antes de entrar na sala que te perguntei se eras boa aluna, tu disseste mais ou menos embaraçada e não sei se foi aí que eu percebi ou se essa imagem ficou guardada até mais tarde. Porque eu achei sempre que tu eras a maior do pedaço e quem eu mais admirava. A ponto de sem nunca ter dado um beijo sequer anunciar alto e bom som repetindo o que dizias que o que eu queria era curtir porque namorar era para parvos. E com tudo o que nos separou há toda a loucura do sangue que nos une e eu agora entendo a tua insegurança mas no fundo ainda acho que és a maior do pedaço. Ou então da minha rua.

Carta

Dia 24 ao almoço costumamos fazer um almoço de Natal, se ainda ninguém te disse, estás convidada. Espero que não tenhas que fazer rabanadas a essa hora???

De resto, sobram muitas saudades; nem me acredito no que escrevi…

Os dias são luminosos, o sol ainda bem quente de dia, sente-se o cheiro do Natal pelas ruas. À noite arrefece muito.

Todos os dias apanho o metro e está lá sempre a mesma senhora de leste a pedir: “feliz navidad” deve ganhar bem melhor do que eu tenho de renda mensal…

Ontem fui ver um filme espanhol ao cinema que achei muito bom: Elsa e Fred… Fartei-me de chorar; tratava de dois velhotes que se apaixonam, um viúvo, a outra diz que é mas não é, e está para morrer. Se passar por aí, não percas.

E a casa da Rua das Flores, é fria?

Novidades genealógicas: tenho nos meus costados os Ramires, da “Ilustre Casa de Ramires” do nosso Eça de Queiroz; na verdade são Cochofeis. Sei que não te interessa nada, mas apeteceu-me dizer… Tenho andado com a língua travada…

Bem, espero novidades tuas e melhor disposição.

Beijos e as mesmas saudades.

L

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Arte Poética

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer

Adília Lopes, Obra.

Família

A avó tinha uma boa pele
e usava o
creme Benamor
que eu comia
às escondidas
(porque era doce)

A avó foi sempre bonita
e até muito grávida
na praia de chapéu
ela parecia uma artista
de cinema
(Greta Garbo)

A avó teve sete filhos
o último nasceu antes
quando o primeiro caiu da
sacada e felizmente
foi amparado
(era o meu pai)

A avó teve partos em casa
feitos pelo avô
e só para um foi preciso
mais ajuda à chegada
o avô disse
(é melhor lavar as mãos)

A avó teve dois abortos
e após a mudança de casa
desapareceram
os frascos de vidro
dos tios que não conheci
(meus tios fetos em formol)

A verdade

There never is any such thing as one truth to be found in dramatic art. There are many. These truths challenge each other, recoil from each other, reflect each other, ignore each other, tease each other, are blind to each other. Sometimes you feel you have the truth of a moment in your hand, then it slips through your fingers and is lost.

Harold Pinter

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Estupfalicidade

A m ao quadrado

A acompanhar o presente
sentencia a rapariga.
Quero ver-te feliz
nem que para isso
tenha de te
drogar.

Da (re)feição

A minha amiga de poucos afectos recebe-me na capital com panelas fumegando de feijoada.
Quando estive doente para a minha Mãe havia bifinho até ao lanche.

Na feijoca e no bife com alho, muita ternura se esconde.

Questão estatística

Por L

28.6 é a idade média de maternidade em Portugal.
Upa! Upa!

A Pordata faz um ano e haverá beberete no grémio literário.
Upa! Upa!

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Check-up

Preocupado com o fígado de contornos proeminentes no limite superior da normalidade e um electrocardiograma de ritmo simural. Normal? Normal é o corte salarial!

Os despojos

As sebentas de Farmacologia
e uma banda desenhada.
A tranquilidade, uma bicicleta verde
e a bicicleta vermelha. Desmontável.
Ali Farka Touré. Toda toda a música.
(Radiohead a mais)
Encomendas amarelas várias.
(não vi tudo em todas)
Um grande amigo
e todas as fotografias.
O lenço com samurais pintado.
Um ramo de rosas de plástico.
Bill Callahan. Mais Smiths.
A minha imagem no espelho
a criatividade e tudo o que
de resto era insuportável ou
vertiginoso em nós.
Sushi e gin tónico.
A afeição ao humor físico.
A pressa.
Um pão com marmelada
180 Km/ h até ao meu destino
e mononucleose infecciosa.
Rinocerontes e marijuana.
Vários copos de vodka.
O cinismo e suficiente cepticismo.
Everybody's got a little hole in the middle
Everybody does a little dance with the devil
And you know I'm evil now
And you shout it loud and proud.

(e de todos os despojos
eu mentia se dissesse que
foi às sebentas de Farmacologia
que mais utilidade dei).

A troca

Está tão bonita tão fresca.
Oh. A menina é que é bonita tão fresca.

(e não há dados seguros que garantam
que a troca de piropos com nonagenárias
faça de nós pessoas melhores)

Y

Não sei se reparou enquanto me auscultava
Que estou já a ficar calvo.

Tratado da República

Nós queríamos um apartamento e pelo anúncio chegámos ao prédio fininho da praça. Quem nos mostrou foi a mãe da rapariga, que ela estava a fazer um doutoramento fora. Havia pouca luz nas escadas e ao sairmos do elevador a porta encostava na parede. Não sei como soube que a rapariga escrevia poemas e até um livro. Os livros dela estavam atados em pilhas. Havia Faulkner e um boneco chorão manchado no corpo de pano. No quarto só cabia a cama e a cortina era escura de feltro. Não sei se soube mas ela era branca e gorda. Não era nem feia nem bonita. E por isso podia permitir-se um interior intricado sem que fossem coisas a mais. Ela fotografou a praça da janela. Foi amável no email que trocámos. Disse com saudade. A minha praça. E para mim a praça foi sempre a imagem da desolação. A praça da República.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Isto não é uma canção de amor

Tu havias de tecer-me comentários.
Faço tudo por um sorriso teu.
Já te disse como és linda ao acordar?
Eu rendia-me às unhas de gel.
Quem sabe não tatuava o teu nome
em símbolos estrangeiros nas partes.
Tu havias de querer sair.
Eu na-na-na. Casa.
Com tantas qualidades
O ciúme de mulher.
O controlo de uma mãe.
Declaravas
És a mulher da minha vida.
Eu engolindo em seco não exagerava
no decote e subia direita ao altar
Esmagando com tacão fino o tapete de flores
Que sempre seria uma festa bonita.
Abalávamos em carícias e beijos de língua
Em chegando bronzeada do resort
eu tentava não escorregar do sofá de napa.
E ao achar-nos já bastante maçadores
Bocejando de tanta cumplicidade e
vida doméstica
À luz das velas em jantar de mortos
Decidíamos
É a altura ideal.

Vamos ter um filho.

(e entre a angústia
o desalento o cinismo
ou o sexo higiénico
não saberia eu nomear
qual o pior defeito)

E então trocávamos a Bimby
por uma passagem para a Ásia
E entre a cabana no meio do rio
da estação do Oriente
da imagem que não nos abandonou
Escapando à terrível episiotomia
Eu transpirava e paria

O bebé de olhos em bico.

(um caso que
gaguejando e
desviando o olhar
eu juraria a pés juntos
não ser capaz de explicar)

Clementina

Change your heart
Look around you
Change your heart
It will astound you
I need your lovin'
Like the sunshine

Everybody's gotta learn sometime
Everybody's gotta learn sometime
Everybody's gotta learn sometime

Change your heart
Look around you
Change your heart
Will astound you
I need your lovin'
Like the sunshine

Everybody's gotta learn sometime
Everybody's gotta learn sometime
Everybody's gotta learn sometime

I need your lovin'
Like the sunshine

Everybody's gotta learn sometime
Everybody's gotta learn sometime

Everybody's gotta learn sometime
Everybody's gotta learn sometime
Everybody's gotta learn sometime

Everybody's gotta learn sometime
Everybody's gotta learn sometime
Everybody's gotta learn sometime

(e entre os amores perdidos
todos estivemos alguma vez
depois da mente imaculada
perigosamente
um pouco perto
do cabelo
da cor e
do resto
da
clementina)

- I can't see anything that I don't like about you.
- But you will! But you will. You know, you will think of things. And I'll get bored with you and feel trapped because that's what happens with me.
- Okay.
- |pauses| Okay.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

M

Depois de carregarmos juntos o gato morto.
Eu chorava chorava. Tu solta solta.
E eu sem saber se sabias que mais que o gato morto.
O que eu chorava era toda a morte que me aconteceu.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Requiem

Ao Soneca

No teu sonho, a dedicatória no curriculum vitae.
E o júri:
- Não acha inapropriada essa dedicatória?
- Inapropriada é essa pergunta.

Ao Soneca, gato malhado, com saudade.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Vosmecê deu sorte

Toda a culpa das
noites mal dormidas
amigos em coma
acidentados
mortes macacas
e hipersudorese matinal

Eu hei-de botá
pra vosmecê
Sargento Getúlio
matadô profissional
há já alguns dias
aterrorizando meu sono.

Sabe, seu Elevaldo, que vosmecê deu sorte de eu não estar com o ferro na mão na hora que vosmecê despontou por trás dos matos, porque se estivesse não trastejava, era tunque, tunque, tunque, tudo num lugar só? No meio da testa num buraco só, e pelaí vosmecê ia? Me olhou assim. Não gostou.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Coisa ruim

Ela prática,
que homem por perto
não seria até mau.

Mais a mais,
há sempre uma
lâmpada a trocar.

Ele habilidoso,
considerando
tocar-lhe as lâmpadas.

Não seria decerto
coisa assim
tão ruim.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Perfect guy

PHIL: (...) What are you looking for? Who is your perfect guy?
RITA: (...) He’s kind, sensitive, gentle, he’s not afraid to cry in front of me.
PHIL: This is a man we’re taking about, right?

[Bill Murray e Andie McDowell, Groundhog Day, 1993]

via Pedro Mexia, na Lei Seca.

Incipiências

M é que tem sorte.
Já viste como ri?
Ela sim, é feliz.
Bonita, eu?
Não, não.
Bonita és tu,
tu!

(adivinhava-se já tendência melodramática
manifestando-se desde 1990)

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Problema

espreguiçou-se
bocejou
enrolou-se
sentada
julgou-se
um
pisa-papéis

(o problema do meu gato
é a identidade)

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Café e cigarros

Vícios nocturnos permitidos
aos audazes enfrentando
bases de dados e distorções
do calendário.

Aforismo de vida

A normalidade é uma qualidade subestimada.
Escasseando, irá tornar-se cara.

Manual do bom condutor

(uma vez apaixonou-se
e sob apaixonamento agudo
embateu no carro da frente)

Regra nº1
Se conduzir não se apaixone.
Um bom condutor
nunca se apaixona.

Regra nº2
Se a condução de veículos for necessária
Apaixone-se por ligeiros
a 20 Km/ hora.

domingo, 9 de janeiro de 2011

All your women things

All your women things
All your frilly things
Scattered 'round my room
Right where you left them
When you left them
Scattered 'round my room

All your hardness
All your softness
And your mercy

All your bridges and bras
Your cotton
and gauze
All your buckles and straps
Releases and traps
All your screws
and false nails
Oriental winks
and Egyptian veils

Oh all of these things
I gathered them
And I made a dolly
I made a dolly
A spread-eagle dolly
Out of your frilly things

Why couldn't I have loved you
This tenderly
When you were here
In the flesh
So tenderly

How could I ignore
Your left breast
Your right breast

How could I ignore
Your hardness
Your softness
And your mercy

Well it's been seven years
And the thought of your name
Still makes me
Weak in the knees

How could I ignore
Your left breast
Your right breast

Smog, The doctor came at dawn

Canção "do sul do rio"

Casei com um mercador das Gargantas
Um dia e outro e eu sempre à espera -
Se adivinhasse da maré a constância
Teria casado com um rapaz do Rio. Cabriolam.

Li Yi, Uma antologia de poesia chinesa


Tributo ao sul extremo

No meio da idade amigo do caminho
Agora de velho em montes do Sul.
Quando a inspiração vem parto sozinho
Conhecer o "vácuo" que triunfa do mundo.
E assim caminho até um ponto de água
Sento-me, a subir as nuvens.
Por vezes, dou com um da floresta
Falamos rimos sem pensar na volta.

Wang Wei, Uma antologia de poesia chinesa

Um dia

Vive o homem a vida numa tigela de poeira
É como bichinhos dentro de um jarro
Todo o dia andando à volta
Nunca sai lá de dentro.
Não nos calha a ventura
Só temos em sorte desgraças.
O tempo parece um rio
Que corre. Um dia, acordamos velhos.

Han Shan, Uma antologia de poesia chinesa

Tofinho

Ámiga.

Tem marido?
(sim)
Mentira. Eu quero namorá você.
Já tenho dizoito anos.

Eu quero dar beijo.
Beijo di amôr.

Mi ricorda.
Amanhã eu volto.
Ti encontro.

(vai-te embora, rapazito
que hei-de ficar fumando
da caixa matreira
e mais de quinze não
hás-de tu ter)

Pala pala.
A fosforeira de Moçambique.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Homens

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar

Daniel Faria

Homens.
Gosto de homens.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Voto

Paz no mundo!

Quinze centímetros a mais
De cabeleira esticada
Branqueamento dentário
Implantes de silicone
Um maillot vermelho
Dois neurónios a menos

E alcançava
alguns votos
para
Miss Portugal.

As gavetas

Arrumámos o passado
engelhado
em gavetas de ternura
que não chegámos a trancar

E entre os sacos de alfazema
e as cuecas velhas
havia ainda alguns abraços e
palmadinhas nas costas.