terça-feira, 29 de outubro de 2013

As provações da amizade

Ou a história do pato atleta

Há quase um ano, convidei alguns amigos para um jantar em casa.
Não sendo apreciadora de pato, eu achava-me caso único, toda a gente gosta de pato.
Havia um pato congelado no frigorífico à espera de ser cozinhado.
Na minha lógica obstinada, julguei ser a ocasião ideal para brindar os meus convidados com um delicioso pato estufado.
Não me pareceu haver mistério na confecção do dito estufado, tarefa que nunca havia realizado antes, já que não gosto de pato.
Na hora da refeição, foi com muito desagrado que tolerei algumas garfadas.
Os convidados metiam dó, a insistir no pato, mal temperado e demasiado duro.
Inevitavelmente, o arroz e a salada foram um sucesso.

(O incidente do pato atleta permaneceu em segredo,
pacto de silêncio dos desgraçados convidados)



Casa é onde está o amor

A premissa estava errada.
Estou contigo porque quero e não porque preciso.

Nas águas-furtadas em frente ao Reno,
entre apontamentos de design e scones caseiros,
o casal esmera-se em esquecer as saudades da pátria
apoiando-se mutuamente e recriando outra paz doméstica.

E a verdade evapora no calor do chá:
Todos precisamos do outro,
espécie de estaca das nossas fraquezas
que nos ajuda a florir. 

sábado, 26 de outubro de 2013

Passeio no jardim


- Quando era pequena, gostava muito de tirar todos os espinhos às rosas.
- Isso parece-me uma metáfora daquilo em que te tornaste. 

(no meio do roseiral,
respirámos Sophia
e reinventámos o Principezinho)

para m. 
que carrega dentro de si
500g de gente 
e toda a ternura. 

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Vida Moderna- um excerto


Saddam Hussein

Há uma coisa em que sou particularmente boa: a ansiedade. Preocupo-me quando a filha anda de carro na Marginal, quando a irmã não escreve todos os dias, quando a mãe vai aos médicos, quando os amigos andam olheirentos, quando o canalizador se atrasa, quando o sobrinho organiza uma exposição, quando o carteiro não traz cartas, quando tocam à porta com veemência, quando descubro um cabelo branco, quando penso nas futuras noras, quando as pessoas não me deixam recados no gravador, quando o filho emagrece um grama, quando me esqueço do número do cartão de crédito, quando ouço os ratos no forro do tecto, quando deixo o computador ligado, quando meço a pressão arterial, quando a graduação dos óculos aumenta, quando a sobrinha parte para Cabo Verde, quando leio artigos sobre a osteoporose das mulheres.
Ao longo dos anos, motivos para me preocupar não têm faltado. Todos os dias, dou por mim a sofrer espirais ansiosas, a seguir ao pequeno-almoço, quando o tema do diário não me ocorre, quando noto que já não tenho garrafas de gás em casa, quando penso no orçamento da universidade, quando reparo que, um dia destes, terei cinquenta anos. Não nego que tem havido ocasiões, em que, de repente, fico sem assunto. Mas, para quem sofra de idêntica doença, tenho um remédio à mão. É altura de nos lançarmos em divagações sobre temas nobres, o trágico destino de quem nasce português, o drama da Esquerda dos anos vindouros, os efeitos da reeleição presidencial, os problemas da Terceira Idade. Esgotados estes temas, existe sempre o recurso, é preciso não esquecer, às obsessões mundiais, a doença das vacas loucas, o aquecimento global do planeta, a exaustão das reservas de energia, a Sida, a polémica sobre os tratamentos hormonais, os níveis de consumo de crack ou a extinção dos elefantes. Só depois de percorrer a via sacra dos horrores da Civilização Moderna, com a consciência de que previ o pior, me sinto bem. Poderão vir dilúvios, pestes, mortes: tenho tudo assente na agenda. (...)

Maria Filomena Mónica

Vida Moderna

Ou O meu reencontro literário

" A certa altura da minha vida, enveredei por uma escrita intimista, tanto mais surpreendente quanto a minha alma é tímida e o meu temperamento misantropo. Entre os motivos para esta exposição do ego, conta-se a necessidade de exorcizar as minhas relações com o quotidiano e o desejo de divertir os leitores. Deparei-me desde logo com um obstáculo. A uma investigadora solitária, com dias plácidos, pouco acontece. Acabei por me convencer que isso não constituía um problema.
Aqui ficam pois estas linhas, escritas na primeira pessoa do singular."

Maria Filomena Mónica

Quanto a mim, neste momento a passar a página 73, encontro-me divertida e recomendo.
Já me surpreendi diversas vezes com sorrisos largos e de orelha a orelha.
O poder balsâmico da escrita fluida e clara enquanto forma de expressão é revigorante.
Estou a caminho. 

Planos e palavrões para G.H.

Factos introdutórios a considerar:
Eu gosto muito de ler e não imagino a minha vida sem livros.
Eu não tenho tempo para ler despreocupadamente há mais meses do que consigo contar.
Eu tenho medo de alguns livros.

O plano:
Antevendo a liberdade que se aproximava, fiz a ronda das estantes e enumerei uma lista mental de livros a (re)ler. Passo a transcrever o plano original.
- Una casa para siempre, de Enrique Vila-Matas, livro fino que há vários meses se arrastava entre a mesa da sala, o móvel da entrada, a mesinha-de-cabeceira, o quarto-de-banho e diversas carteiras, eternamente inacabado.
- A piada infinita, de David Foster Wallace. Depois de uma empresa tão extenuante como a que tive, o meu espírito estóico e auto-flagelador não teve dúvidas em adicionar esta obra complexa de cerca 1000 páginas à lista, num plano inconsciente mas perserverante de prolongar o meu sacrifício.
- A arte da guerra, de Sun Tzu. Este é um livro pequeno que comprei numa edição da Quasi ao preço irrisório de 1.5€. Pelas minhas contas (a vantagem de datar os livros), tê-lo-ei lido em 2009, numa altura em que não estava preparada a assimilar o seu conteúdo, já que dele não julgo ter tirado qualquer proveito para a minha vida prática. Adicionei-o à lista, assumindo que depois de tão longa cruzada o mais sensato era preparar-me imediatamente para nova investida.
- A hora da estrela, A paixão segundo G.H. e Perto do coração selvagem, todos de Clarice Lispector. Na mesma linha, adicionei também à lista Clarice Lispector, uma vida, trabalho biográfico de Benjamin Moser. As obras de Clarice Lispector são para mim como um penso rápido colado há demasiado tempo em perna peluda. Já havia descolado os bordos noutras ocasiões, esta era pareceu-me a altura ideal para o arranque final a sangue frio e sem toalhas na boca.

A acção ou o relato dos factos conforme aconteceram:
Ordenei as minhas prioridades.
Terminei rapidamente Vila-Matas de forma inócua e com o objectivo primordial de cumprir um dever. Não deixarás um livro inacabado.
Avancei assim rapidamente para Lispector.
De forma razoável, deixei Perto do coração selvagem na estante, em local seguro donde só vislumbro a lombada e aonde a minha miopia impede a leitura do título. Relembrando os factos introdutórios com um exemplo concreto, eu tenho medo deste livro e já o li uma vez.
De forma sensata em tema e extensão, dediquei-me À hora da estrela. A história angustiante da nordestina Macabea não me causou mossa alguma, porque distante do que sou e breve o seu relato. Possivelmente deslumbrada pela beleza misteriosa de Lispector, eu comentava: puxa, como ela escreve bem.
Embalada pelas minhas elevadas expectativas, segui directamente para A paixão segundo G.H. O que daí sucedeu, pelo abalo estrutural nos meus planos, é sem dúvida merecedor de relato em parágrafo próprio.

Aqui vai, sobre A paixão segundo G.H. 
Vou ignorar a advertência inicial da autora a possíveis leitores, citando apenas que no seu caso, "G.H. foi dando a pouco e pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria."
Em suma, o livro conta-nos a história de uma mulher possivelmente bonita e de meia idade que toma ociosamente o café da manhã em roupão na sala do seu apartamento de cobertura da classe alta.
Entre conjecturas e cigarros, mergulha no bas-fond a arrumar o quarto da empregada demissionária.
É aqui que se desenrola o resto da acção. Encontra um quarto estranhamente solarengo, pinturas na parede e toda uma atmosfera que lhe era alheia, na sua própria casa. Entre novas conjecturas de mulher de meia idade, sem filhos e pouco que fazer, equaciona toda a problemática da biologia humana e feminina. À espreita do armário perro e ressequido de tanta luz, emerge uma barata.
Eu, que até aqui já me encontrava nauseada, contive agora o vómito. Odeio baratas.
Todas as conjecturas e metáforas à volta da barata exacerbaram o meu desconforto abdominal.
Poupando o leitor, enumero apenas algumas descrições sobre a barata:  "uma cariátide viva"; "Ela era arruivada. E toda cheia de cílios"; "os olhos eram radiosos e negros. Olhos de noiva"; "Vista de perto, a barata é um objecto de grande luxo. Uma noiva de pretas jóias".
Vacilei realmente quando a barata foi entalada entre as portas do armário e em todos os "milímetro grosso de matéria branca espremeu-se para fora" das páginas seguintes.
Os olhos da barata como ovários férteis revolveram-me. Já havia passado por estes sentimentos em 2010, denunciam os bilhetes de barco Millazo-Volcano, Volcano-Salina e o postal das Eolie escondidos entre páginas numa tentativa de suavizar a odisseia. Nessa altura, não logrei o objectivo de alcançar o fim, descolei apenas os bordos do penso. Mas agora, estóica e idiota, concluí o processo numa madrugada.
G.H. fantasiou que ia jantar crevettes fora com amigos e, gulosa (acrescento eu, que todo o evento carece realmente de tom humorístico), comeu a barata.
"Eu estava comendo a mim mesma, que também sou matéria viva."

A lição ou em jeito de conclusão:
Clarice Lispector, sua pretensiosa, tiras-me o ar.
De relevante, apenas tenho a dizer: Vá si fudê, C.L., e ainda G.H. e suas estúpidas valises.
Abandonei o meu plano estruturado.
Vou-me dedicar à actualidade.


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Metade

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio

Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.

Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que de tristeza
Que a mulher que eu amo seja para sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflicta em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Porque metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Para me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer
Porque metade de mim é plateia
E a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.

Oswaldo Montenegro


(porque metade de mim é amor
e a outra metade também)

O espinho

Nós que andávamos desatentos e ocupados não o valorizámos.
O espinho era fino e passou despercebido.
Um pequeno pontinho marrom sob a pele, que mal pode originar?
Pulámos e dançámos.
O espinho aprofundou-se e inflamou os tecidos.
Agora febris acusamos a carne inchada que lateja e dói.
Resta-nos a confiança.
Na medicina, aguentamos que nos lancetem a ferida infectada.
Em nós, porque a força está connosco para além do espinho.


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A paixão segundo G.H.


E é só o que posso dizer a meu respeito? Ser “sincera”? Relativamente sou. Não minto para formar verdades falsas. Mas usei demais as verdades como pretexto. A verdade como pretexto para mentir? Eu poderia relatar a mim mesma o que me lisonjeasse, e também fazer o relato da sordidez. Mas tenho que tomar cuidado de não confundir defeitos com verdades. Tenho medo daquilo a que me levaria uma sinceridade: à minha chamada nobreza, que omito, à minha chamada sordidez, que também omito. Quanto mais sincera eu fosse, mais seria levada a me lisonjear tanto com as ocasionais nobrezas como sobretudo com a ocasional sordidez. A sinceridade só não me levaria a me vangloriar da mesquinhez. Essa eu omito, e não só por falta do autoperdão, eu que me perdoei tudo o que foi grave e maior em mim. A mesquinhez eu também a omito porque a confissão me é muitas vezes uma vaidade, mesmo a confissão penosa. 

C.L.