sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Questão

Vestido justo
Anca a mais
Mamas a menos

Tramada
é a questão
da proporção

domingo, 26 de dezembro de 2010

Memória

À de JT, ou primo gin tónico

Este gin tónico traz-me tantas recordações.
Tantas, tantas, que nem imaginas.
E é que nem uma dúzia de gin tónicos as conseguirão alguma vez
apagar.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Festas felices

Do banco chega o email
que me deseja
um Santo Natal

e euros à parte
o voto soa
estranho.

Casualidade

A senhora da limpeza não percebe
e inclina os passepartouts em 30º

Eu não gosto muito mas não digo
e desta forma os meus avós abraçados

Encontram-me a comer a papa ao colo do tio
e a tomar o leite no biberão ao colo do pai.

Hora do lanche

A avó não queria
que me debruçasse na sacada
e brincasse
com a cara tão perto dos gatos.

E eu gostava da avó
que me dava beijinhos
canções
e lencinhos perfumados.

Mas debruçava-me na sacada
a avó dizia ai que esta menina
só faz tropelias
e também brincava com a cara como calhasse.

*

Na casa das tias da avenida
ao lanche havia chá
bolachas com queijo torradas
manteiga
E o queijo era da Quinta dos Ingleses.

A empregada da tia chamava-se Emília
e a tia era a sra. D. Emília
quando telefonavam para a tia
respondia a Emília
É a Mila
o que enervava a nossa
tia Mila
ou sra D. Emília.

Polimorfismos

As duas irmãs são do pragmatismo.
Se para uma é pão pão pão.
Para a outra queijo queijo queijo.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Viva

é que eu ando tola da cabeça.
ando assim zum zum zum.
sempre com o ouvido a trabalhar.
não ando bem,
sinto-me inocente.

(então não ligue aos zuns zuns
e viva lá a inocência)

Bluebird

"there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say, stay in there, I'm not going
to let anybody see
you.
there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I pour whiskey on him and inhale
cigarette smoke
and the whores and the bartenders
and the grocery clerks
never know that
he's
in there.

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say,
stay down, do you want to mess
me up?
you want to screw up the
works?
you want to blow my book sales in
Europe?
there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too clever, I only let him out
at night sometimes
when everybody's asleep.
I say, I know that you're there,
so don't be
sad.
then I put him back,
but he's singing a little
in there, I haven't quite let him
die
and we sleep together like
that
with our
secret pact
and it's nice enough to
make a man
weep, but I don't
weep, do
you?"

carlos, carlos
presta atenção
de tanto você bebe
de tanto você fuma
de tanto você xinga
vai ver que um dia
você mata
esse pássaro azul

(e funeral de ave
não é bonito de ver
não)


Charles Bukowski
The Last Night of the Earth Poems
1992

História triste

O Natal.
A tua falta.
A Passagem de Ano.
Os teus anos.
Outro ano.
O desamor.

E quantas estaladas da vida
para acabar de vez
com essa bomba inútil
a que chamaram
coração?

domingo, 19 de dezembro de 2010

Natal

ou Assalto ao presépio I

- Mari, onde estás?
- Estou aqui! A bincar com o menino jisus...

sábado, 18 de dezembro de 2010

Quinix

A Mafaldinha
estudou fora.
fumou droga.
teve um filho.
e nove amantes.

A Mafaldinha
desbastou o cabelo.
emagreceu.
e disseram até que
já gosta de sopa.

Flora

O escritor premiado
entretinha-se com a obstipação
lendo quadradinhos na sanita.

Vimos todos os filmes

Vimos todos os filmes
mas ainda não sabemos o fim de nenhum,
somos como a luz que desconhece
a própria velocidade.
Os relógios são a decoração doméstica
da angústia, damos corda
aos que precisam e não precisam
sem sabermos nada
da corda e da angústia.
Anos e anos amontoam-se
como nuvens ou tumores benignos
entre as nossas pequenas ciências
e o pressentimento de que
Deus escreve direito e nós
somos as linhas tortas.

Pedro Mexia, Duplo Império

(e até era preciso
que me endireitassem
esta linha torta)

Palavras proibidas

Ou o que nunca sairá da minha boca

O meu ex.
(com ou sem sufixo)

Serás
aquela Primavera
um ano turbulento
o primeiro orgasmo
alguns erros de casting
ou
simplesmente
um amigo.

(sem que se note
que engoliste em seco
ao encontrar o teu amigo)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Pecado capital

O suborno:
Chocolatinhos.

(antes do almoço
ao almoço
depois do almoço)

Ai.
Ai.

O castigo:
Dor de barriga.

Ao telefone

- Olá?
- Estou aqui a ver um avião a passar.
- Olá, como estás?
- Passam baixinho aqui os aviões.
- ...
- E que frio está hoje.

No metrô IV

A rapariga é mulata, de ar febril.
- A minha mãe diz que sou louca, que não posso chegar para as pessoas falando isso. Eu não quero incomodar ninguém, quero apenas espalhar a palavra de deus.
- Não, não ligues. Agora és louca! Olha, ainda um destes dias estive com o pastor do Reino de Deus, deu-me revistas e panfletos para falar às pessoas e espalhar a palavra porta-a-porta.
Exulta a outra, arregalando bem os olhos:
- Uiiiiiiiii. Que ele detesta! O diabo, o diabo de-tes-ta isso!!!!

(mas não podemos nós fazer
se for só de vez em quando
aquilo que o diabo gosta?)

Contra-natura

Para o quadrúpede que por cá se passeia
Está programada a menopausa
Ainda antes da menarca
(acabando-lhe de vez
com a possibilidade de coitarca)
o que, embora necessário,
parece todavia injusto.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Aforismo do pós-moderno

Praticamos a libertinagem sexual
Conservando imaculado o decoro sentimental.

Encomenda (in) esperada II

Ao som da música a subir a rua da Restauração eu descia as escadas em caracol do Largo de Mompilher. Pela caixa do correio subi até ao 4º andar da Rua das Flores.
O postal. O café turco. A caixa de fósforos. Os panfletos. A colher russa. Um balão verde.

Amigo, desfaçamos os equívocos.
O pacote amarelo vem porque eu decido e tu só pões o selo?

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Modernismo

As meninas feias acordaram oprimidas e rasgaram o espartilho.
Prepararam a marmita e bateram com a tela para um Piquenique na Relva.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Mau tempo

Ela morreu a caminho de casa num dia de geada contra um camião fora de rota. Ele era seu irmão e acabaram a tomar um café. A rapariga queria ir-se embora daquele papel de consolo constrangedor mas havia relâmpagos e chovia de mais. Até à mensagem a horas tardias Amo-te 1 2 3 4 5 contaram-se o tempo do trovão 6 7 8 9.

sábado, 13 de novembro de 2010

Quero escrever o borrão vermelho de sangue

Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.

Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.

Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder.



Clarice Lispector

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Senso

No meu computador, emperrou-se uma tecla.
Medida de decoro, para não me insurgir contra o aralho do tempo.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Ao balcão

A tua exuberância atrai os olhares do par em ângulo recto e tu explicas.
Qualquer coisa entre os homens fracos terem necessidade de controlar e as mulheres inteligentes evitarem relações. Olhas o nosso par e eu confirmo. Eles falam? Não! Ficam calados, cada um virado para si (mexes os talheres para exemplificar).
É nisto que dá.
Claro que, para ti, nós somos das inteligentes.
Tu completamente mulher vulcão, femme fatale. Eu enternecida, que não me lembrava que és mais frágil de bebida, que a sangria te acentua o dramatismo.
Tu a mirar-me do salto da tua bota. Sais à noite de sapatilhas?
Eu ainda a lembrar-me daquele Verão inteirinho em que gostei a sério do filho do fruteiro enquanto tu beijavas o nadador salvador.
E toda a equipa masculina do futebol de praia.

sábado, 16 de outubro de 2010

Um dia

A mulher sem memória encontraria o homem sem passado.
E em extensão variável prometiam-se pintar a manta num livro em branco.

A público

| Pelo alfa pendular, a mão esquerda (?) de dedo mínimo espetado de Teixeira dos Santos larga na mão aberta de Gama um projecto de Orçamento do Estado incompleto, Sócrates caminha erecto e satisfeito a cores, perfilado mais à frente ao lado de Cavaco no dia da República, ambos de semblante carregado ou dorido enquanto Pacheco Pereira aumenta graciosamente a nossa miséria com 48 ideias de futuro |
No meio de tudo isto, vale-nos Kate Moss, que se casou descalça e com um vestido branco transparente bem para lá dos trinta e cinco. Oh yeah.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Grafia

A costureirinha escrevia romances porno entre as provas e teve traição apanhada pelo companheiro porque o boné dos Super Dragões coincidia com o do ardina.
A ver se entre o passajar de meias ou cuspindo alfinetes aprendeu a lição.
Pornografia barata sim. Mas anónima.

Plano de indecência

Escapando às trincheiras, linhas de fogo
e quininos do gin tónico para evitar a malária.

Cofia a barba ao espelho e há-de pensar
Quantas vezes terei que esborrachar o seu nariz
Quantos cegos terei que atropelar na passadeira
Quantas vezes terei que trepar à mulher do meu amigo
Para que se acabem
de uma vez por todas
os rumores
de que era uma boa pessoa?

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Plano de austeridade

Ou This is no country for old men.

A velha octagenária remexendo no contentor do lixo foi tolhida pelo camião da recolha.
Sofreu rabdomiólise e acabou amputada.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

Carlos Drummond de Andrade


Opus-pistótono

O dia amanheceu fresco para Miss Cavendish.
Ou era fresca a saia curta de Miss Cavendish para o dia.

(mas sem dúvida, não haveria modo mais
amável de receber o canalizador)

domingo, 26 de setembro de 2010

A letra M

Na cicatriz por onde pássa a linha médio-axilar.
M de quê?
(M de mula, M de mar, M de mãe, M de mundo, M de quê?)
M de pneumotórax.

No metrô III

Ou Contra factos

Ao meu lado, discutem-se os feriados.
- Dia da Restauração. Eu para mim acho bem. Veja só, o pessoal da restauração nunca pára, nem feriado nem fim-de-semana. É que nem médico, enfermeiro, a mesma coisa.
- Restauração mas da Independência.
(inútil tentativa do senhor de bigode)
- Não, não, restauração tem muita saída, é um negócio com muita exploração. É que nem médico em hospital. Nunca pára.

Que se dane a Independência. Viva a Maria Caipira.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Na enfermaria

As mulheres de Botero trocam impressões enquanto tomam soro.
- E donde você mora, como é que é? É na campanha?
- Campanha? O que é isso?
- É assim. Fora da vila.
E para quem está de fora a conversa parece um pouco. Avec.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Necrológico dos desiludidos do amor

Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia

Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e de segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles."

Carlos Drummond de Andrade

E dos desiludidos que não se mataram
pum pum pum adeus, enjoada
A balança desequilibra
da cabeça voluptuosa
ao sugadouro do estômago
sem passar por nenhum coração.
E se a estes fizéssemos autópsia
o relatório da histologia
acusaria a gastrite.
(e isso não chegaria nem
para manchete de jornal)

No metrô II

À mercê da irritação matinal, eu resisto e não aceno de maldade
ao senhor de meia idade que corre para o metro em andamento .

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

No caminho

Se nos cruzarmos no caminho ao fim da tarde

Tu com a T-shirt amarela de que mais gosto
Eu vestindo uma saia de flores inconveniente
Tu não irás desviar o olhar do écran
Eu vou menear as ancas e continuar.

(ainda assim será difícil
o tal caminho mais fácil)

Questão de fé

Em Paris, ao som de uma boa banda sonora, assistimos a desatino conjugal entre Anna e Paul.

- Amo-te.
- Bem, eu sei que me amas. É a diferença entre nós.
- Como podes saber que te amo, ter tanta certeza?
- No princípio, antes de vir atrás de ti para este buraco, mesmo no princípio, nos primeiros dias, adormecia repetindo a mim própria "O Paul ama-me". Dizia-o em voz alta, centenas de vezes, como uma oração. Eram palavras sem significado, mal nos conhecíamos, mas qualquer coisa houve, alguma coisa se formou. Acreditei que me amasses, acreditei no teu amor, como acredita quem tem fé.

Na vida real, ninguém bebe tanto gin sem se embebedar.
Na vida real, já ninguém tem fé.

No metrô

A rapariga da pulseira de berloques revira os olhos ao telefone.
E sou eu que apanho o trejeito de desdém dirigido ao outro lado da linha.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Nos Cus

Pela pena de um António autografado, chega a voz de Paul Simon.

The problem is all inside your head
She said to me
The answer is easy if you
Take it logically
I´d like to help you in your struggle
To be free
There must be fifty ways
To leave your lover

E seria mais fácil se houvesse guerra
Os deslizes
para nádegas tristes
peitos murchos
Era o medo
Só um homem.

She said it´s really not my habit
To intrude
Furthermore, I hope my meaning
Won´t be lost or misconstructed
But I´ll repeat myself
At the risk of being crude
There must be fifty ways
To leave your lover
Fifty ways to leave your lover

Nos Cus de Judas
entre lógica distorcida ou unilateral
desculpávamos o cambalear
para germânica insípida
de bom humor e fartas carnes
E essa seria a primeira
de cinquenta maneiras.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Memória de elefante II ou III

Nos fusíveis da minha memória, cruza-se uma imagem.
Quando nenhum era ainda actual, o ex nº 1 vem pedir fogo.
É o ex nº2 que lhe acende um cigarro ao contrário.
Desatenta aos indícios, eu menosprezei a premonição dum futuro.
Incendiado.

domingo, 19 de setembro de 2010

Papa benta

Ou papaffiti

O reformado veste fato de desporto em missão cívica dominical.
Disfarça as pichagens do prédio com tinta branca.
Entre o bom dia, menina sorrio cortês à heresia.
Vão-se os sarrabiscos. Fica o Joana, come o Papa.

sábado, 21 de agosto de 2010

A cidade queimada

Tantos pintores

A realidade comovida agradece
mas fica no mesmo sítio
(daqui ninguém me tira)
chamado paisagem

Tantos escritores

A realidade comovida agradece
E continua a fazer o seu frio
Sobre bairros inteiros, na cidade, e algures

Tantos mortos no rio

A realidade comovida agradece
porque sabe que foi por ela o sacrifício
mas não agradece muito

Ela sabe que os pintores
os escritores
e quem morre
não gosta da realidade
querem-na para um bocado
não se lhe chegam muito pode sufocar

Só o velho moinho do acordeon da esquina
rodando a manivela da trabuqueta
sem mesura sem fim e sem verdade
dá voltas à solidão da realidade

Mário Cesariny

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O marquês de Chamilly a Marianna Alcoforado

Minha senhora deve ter
uma coisa muito urgente e capital
a dizer-me
porque me tem escrito muito
e muitas vezes
porém lamento dizer-lho
mas não percebo
a sua letra
já mostrei as suas cartas
a todas as minhas amigas
e à minha mãe
e elas também não percebem bem
não me poderia dizer
o que tem a dizer-me
em maiúsculas?
ou pedir a alguém
com uma letra mais regular
que a sua
que me escreva
por si?
como vê tenho a maior boa vontade
em lhe ser útil
mas a sua letra minha senhora
não a ajuda

Adília Lopes, Obra.

Hardcore

Dez para as duas
Sapatos a mais para Cinderela
Não há orquídeas para Miss Blandish

*

Ela era boa rapariga- Sãozinha
ela era uma boa rapariga- Samantha
ela não era uma rapariga- Lassie

Adília Lopes, Obra.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O derby

No intervalo, o mister ajeita o casaco e dá conselhos ao jogador.
Para ser ponta-de-lança, não podes estar sempre à defesa.
Acabou o intervalo. Volta ao banco, cruza a perna. Distrai-se comendo ranhetas.
Assim como:
Your faith has to be greater than your fear.

sábado, 14 de agosto de 2010

Normas de conduta

1. À partida, há passos em falso que liquidam qualquer possibilidade. Fica por aí.
2. Quem te diz o que queres ouvir, quer sacar-te.
3. Se houver rolo, é porque o decidiste.
4. Nesta altura da vida, é inútil elucidar alguém. Podes manter a ilusão da conquista.
5. Os homens, mesmo os letrados, são básicos. Ou não seriam homens.
6. Afasta-te dos que se prestam a ser tapete. Cria maus hábitos.
7. Deves contar sempre com um testosterona amigo. Dá a visão por outro prisma.
8. Memoriza as lições sobre frases proibidas. Cheiras tanto a Tabard. Brandon, como no Beverly Hills 90210? são bons exemplos.
9. Se proferiste uma frase proibida, finge que não aconteceu. Dizer que o Dylan era o nosso favorito não ajuda.
10. Assegura-te desde cedo que da norma 7 não passarás à 2.

(qualquer insinuação sobre ser uma megera feminista será tiranamente rejeitada)

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O desamor

Virtude do desamor,
expulsamos as palavras como um parto.
Mas quem virá lamber
este filho ensanguentado?

Isto não é um conto

O rapaz do brinco na orelha acerta as margens das fotografias.
São fotografias de casamento, para cima de cem.
Distraiu-se e guilhotinou os noivos.
Bem feito. Já ninguém se casa.

Animada, ela escolhe fotografias para impressão rápida.
E de momento invejo-a um pouco.
Não sendo feia nem bonita, ganha pontos porque é simpática.
Nossa, tá bé-lê-za.

Esbarro na estante com A Flor do Deserto.
Partilhámos a tristeza de não ter um livro decente.
Agradecia-te a gentileza ao chamar-me.
Adormeceste, podes-te queimar.

E volto a casa com dois livros.
Diário de um Homem Supérfluo.
A lua passou a quarto crescente. Há três buracos no pano estendido.
E Isto não é um conto.

Frutices

Às pêras chamamos bananas
Aos bananas chamaremos um figo

Mostrando que é bem melhor
O sabor da melancia

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Alta dosagem

Mephaquin.
Menstruação.

(hoje troco
os mês
pelos bês)

Ben-u-ron.
Brufen.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Take the Gautrain

No pets.
No fire arms.
No chewing gum.
No excessive laughter.

I love you.
Will you give me your phone number?
(diz o guarda solícito acompanhando-me
no tapete rolante)

Otherwise take the
risk of prosecution.
(execution?)

I really love you.
Will I see you again?

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Relance matinal

Enternecida como uma tia à janela com as semelhanças entre o gato novo e o antigo Mischka, hei-de assustar-me com a possibilidade.
Da velha tonta dos gatos perdendo urinas após acessos de tosse em casa bafienta com manchas de mijinha na alcatifa.

Para resgatar a minha juventude, preciso passear pela trela em trote alegre de mini-saia e comendo sorvetes um novo amigo.
Bolas.
Um dia eu hei-de ser mais cães.

domingo, 8 de agosto de 2010

Saudades

Estou de volta ao terraço ensolarado com gaivotas. Há uma nova ninhada de gatos e já abriram os olhos. Reencontramo-nos sem equívocos. Já não há leões a passar, rinocerontes, homens nem hienas. O bonsai Siriri resistiu à insolação provando que também há força na fragilidade. De volta também aos amigos. Vocês, que aí estão. Sempre que é preciso um abraço ou a palavra sensata. Olé, tenho saudades.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

A partilha

Oji mi faiz
maningue falta
A bola vermelha
No por-do-sol
Entrando no mar.

(a parte disso
tivemos sexo repuxos
de baleias longinquas
e ate uma pequena parte
de substancias ilegais).

Faltam os acentos e um pouco mais.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Dos afectos

"Como fazer-te saber que há sempre tempo?

Que temos que buscá-lo e dá-lo…
Que ninguém estabelece normas senão a vida…
Que a vida sem certas normas perde formas…
Que a forma não se perde com abrirmo-nos…
Que abrirmo-nos não é amar indiscriminadamente…
Que não é proibido amar…
Que também se pode odiar…
Que a agressão porque sim fere muito…
Que as feridas fecham-se…
Que as portas não devem fechar-se…
Que a maior porta é o afecto…
Que os afectos definem-nos…
Que definir-se não é remar contra a corrente…
Que não quanto mais se carrega no traço mais se desenha…
Que negar palavras é abrir distâncias…
Que encontrar-se é lindo…
Que o sexo faz parte da lindeza da vida…
Que a vida parte do sexo…
Que o porquê das crianças tem o seu porquê…
Que querer saber de alguém não é só curiosidade…
Que saber tudo de todos é curiosidade malsã…
Que nunca é de mais agradecer…
Que autodeterminação não é fazer as coisas sozinho…
Que ninguém quer estar só…
Que para não estar só há que dar…
Que para dar devemos antes receber…
Que para nos darem há também que saber pedir…
Que saber pedir não é oferecer-se…
Que oferecer-se, em definitivo, não é querer-se…
Que para nos quererem devemos mostrar quem somos…
Que para alguém ser é preciso dar-lhe ajuda…
Que ajudar é poder dar ânimo e apoiar…
Que adular não é apoiar…
Que adular é tão pernicioso como virar a cara…
Que as coisas cara a cara são honestas…
Que ninguém é honesto por não roubar…
Que quando não se tira prazer das coisas não se vive…
Que para sentir a vida temos de esquecer que existe a morte…
Que se pode estar morto em vida…
Que sentimos com o corpo e a mente…
Que com os ouvidos se escuta…
Que custa ser sensível e não se ferir…
Que ferir-se não é sangrar…
Que para não nos ferirmos levantamos muros…
Que melhor seria fazer pontes…
Que por elas se vai à outra margem e ninguém volta…
Que voltar não implica retroceder…
Que retroceder também pode ser avançar…
Que não é por muito avançar que se amanhece mais perto do sol…

Como fazer-te saber que ninguém estabelece normas, senão a vida?"

Mario Benedetti

domingo, 11 de julho de 2010

Underworld

Should it have been a sunny day
Little Miss Sunshine would ask
Mr Tickle out.

(não passassem ambos
de estampas em cuecas velhas
com os quais não se pode fazer histórias)

Triângulo

Há a mesa posta, Beethoven e no crepúsculo quase o pôr-do-sol no arvoredo.
Encadeamos perguntas para esqueceres com tanta poluição as sardinhas não são iguais e agora somos três.
- Que achas do gato?
- Para começar. É uma gata.
E a cadela reboliça, que até a ela a menopausa alargou as formas, foge surripiando restos.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Bird watching

Logo pela madrugada
ziguezagueando em voo raso
elas seguem piando sempre.

Fernão Capelo me perdoe
que eu desejo uma chumbeira
e também um pouco de mira.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Errata

Não formamos um casal
podemos ser um par
Não seremos namorados
mas podemos ser amantes.

(o que será menos fastidioso
e um pouco mais picante)

Registe-se a errata.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Midi

No ovo estrelado
reavivo a minha infância
ao Domingo
a pergunta
Quantos queres?

Eu quero no meu enterro
amigos em azul marinho
recitando nobre prosa
música solene tocando.

Os meus cães uivando
Gatos enrolados e alheios
Quero flores silvestres
em esquife humilde.

E enquanto se projecta
a minha morte
O som ritmado e metálico
do vizinho aparando as unhas.

Eu quero as minhas cinzas
revolvendo a terra
Do que resta de mim
há-de brotar uma árvore.

E ovos?
Quero um.

Detergências

Enterros
partos
famílias
operações
doenças
revistos à portuguesa
o mesmo Tide
lava mais preto

Adília Lopes, Obra.

(resta-nos a esperança
de encontrar ainda Omo,
que sempre
lava mais branco)

God is a word

Deus trino
Deus uno
Deus abstracto
Deus concreto
Deus geométrico
Deus figurativo
o triângulo é figura
e a figura é círculo
e Deus centro de mesa

Adília Lopes, Obra.

and the argument ends there.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

A partida

Ou À partida

Perto do Coração Selvagem e entre as valises de G.H.
Mira-me o Big Sur inacabado da mesinha-de-cabeceira
Atestando como verdade fundamental
Vão-se os homens, ficam os livros.

Requiem

José, que indelicadeza.
Brincam com a minha memória.
E idolatram-te no facebook.
Eu não sabia desse transtorno.
Os mortos são-nos usurpados.

Todos os nomes

Ou A lei da vida

A octagenária vivaça
de cabelo empoado
sacode de pó-de-arroz
o sexo engelhado.

Não se empoará o sexo
às Cátias e Veras Mónicas
que lhes vedaram o envelhecer
as Gertrudes e as Joaquinas.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Eucaliptofacientes

Dr. Bayard vou-me suicidar com Vicks
viver é sobreviver a uma criança constipada
a Aspirina não cura as dores da alma
a literatura inclusa não basta
ingerirei também rebuçados do Dr. Bentes
e pastilhas Valda

Adília Lopes, Obra.

domingo, 23 de maio de 2010

Contingências da forma

O besouro desastrado
roda roda roda sobre si mesmo
esfregando-se em círculos pelo chão
vítima das largas costas
para curtas patas.

A rapariga solícita
ao recolhê-lo em concha
para o largar- voa!
Há-de afligir-se
ploc! roda roda roda.
Finalmente.
Abre asas surpreendentes

Que até o besouro
tem direito de voar.

Titia

"Os seios da tia eram profundos, podia-se meter a mão como dentro de um saco e de lá retirar uma surpresa, um bicho, uma caixa, sabe-se lá o quê. Aos soluços eles cresciam, cresciam e de dentro da casa veio um cheiro de feijão misturado com alho. Em alguma parte, certamente, alguém beberia grandes goles de azeite. Os seios da tia podiam sepultar uma pessoa!"

C. Lispector, Perto do coração selvagem.

domingo, 18 de abril de 2010

Espera

A rapariga
apreciando flores nos cactos
e as árvores do museu
por trás o céu rosado.
Sem luz eléctrica às oito
chegou a Primavera.
E põe-se assim a casa em flor.
Há-de rir-se da vizinha
com um pouco de pena
Cabelo rosa depois dos sessenta?
Lendo livros malditos
Poesia.
Fuma cigarros emprestados.
Com vestido de flores.
Sapatos de salto e meias
que ainda não é o Verão.
Gatos no zinco devagar.
O preto. O branco.
Onde está o preto e branco?
Gaivotas em bando gritando.
E a vizinha piando
- Biiiiiiaaa.
- Senhora Avó, detesto sopa.
Cala-te que és Biiiiia.
Não conheces a Mafalda.
Dormindo no lado errado da cama
pelo cheiro da almofada.
A rapariga segue.
esperando.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Ela e ele

Finalmente entendeu com clareza
os indícios na trovoada.
Era o seu mau humor
que controlava o tempo
e não o oposto.
Inquieta, rebolou-se na cama.
Lá fora, recomeçou a chover.

Aos trinta anos, ele decidiu matar-se.
Estourar os miolos contra uma parede branca.
enfiava o tiro pela goela ou nas têmporas?
Ou enforcar-se simplesmente.
Com uma gravata ou meias de senhora?
Em vez disso, casou-se.
Teve um casal de filhos feios.
Jogava a sueca depois de aposentado.
E dizem que ocasionalmente
frequentava prostitutas.

sábado, 20 de março de 2010

Mamitalk

Foram tão comentados os de S.
(espetadas falanges distais de mindinhos)
que ele receia,
ao apresentarem-se,
responder-lhe ao cumprimento:
"Mamilo bem, obrigado".

Depósito

Na Trindade das prostitutas
a charcutaria da esquina
publicita as rudes morcelas
e exibe o apropriado cognome
depósito de carnes.

quinta-feira, 18 de março de 2010

O espelho de m.

O rapaz passeia pelo braço
em pequenos passos
a morte de seu pai.
Ao espelho, este desabafava.
A isto chega um homem?

sábado, 13 de março de 2010

Bonne du jour

Em estilo mordaz bastante feminino
fará elogios à tua amiga
brindando-a com
um John Lennon de identidade sexual ambígua.

Cumprida a pequena maldade diária,
poderá então dedicar-se
sem demora
à árdua tarefa de defender fracos oprimidos.

Capilarites

A benesse de se ter
um cabeleireiro heterossexual

(além de folhear a Maxmen
descobrindo que
Fiéis são os cães)

é
sobretudo
Que nos hidratem o ego
Enquanto nos aparam as pontas.

Assim, num
dois em um.

quinta-feira, 11 de março de 2010

O eterno amoroso II

Dá conta das novidades em estilo horóscopo, com graça e capacidade de síntese.
Família e dinheiro em alta.
Tornozelo recuperado e regresso ao desporto.
Assim, em grande forma física apesar da lamentável falta de sexo.
- E a number two? perguntarei- troca de nome incidental, à mercê do meu subconsciente género.
- Dei-lhe um chuto. Demasiado pegajosa.

Mesmo um amoroso,
obedecendo ao Y que há em si,
acabará por demonstrar
quão desconcertante é
O significado do falo.

sexta-feira, 5 de março de 2010

O dia

Dêem-me luz, havia de dizer.
E, com o pedido em mente, chegaram longe.
Debaixo de chuva a uma casa às escuras.
Luz, nem da eléctrica.
Um dia hás-de ter o que procuras.
Mas hoje não é o dia.

quarta-feira, 3 de março de 2010

L´Angoisse

Pressentindo a Primavera que se adivinha quando finalmente já não chove, há-de sacudir-se de penas, pintar os lábios e ajeitar o cabelo. Preparar-se assim para a partida, à procura da nesga de céu mais azul.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Da cave na colina

Gira em modo repeat
no leitor
em modo repeat
em modo
modo modo
Com velada intenção de autocomiseração
Outro dos mortos antes do tempo
Este o nomeado Elliott Smith.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Vigia linguística

Da vigia montada para espreitar o mar
Experimentando o binóculo de longo alcance
Havia de se espantar o Homem
Vejo até os advérbios a passar nos barcos.

Comédias e provérbios IV

Atordoada na traição de quem mordeu o isco
É a rabiar e com o fôlego que lhe resta
Que prova ainda a condenada tainha
O significado de se ter sangue na guelra.

Pesca grossa

- Não percebo o que leva os homens a pescar. Talvez a cana seja um prolongamento do eu? Um super-ego que atiram para longe?
- Pode ser. Um super-ego. Com uma minhoca na ponta. E a verdade é que esse lançamento sempre me afligiu. Tinha medo que o anzol me cegasse dum olho.

Shark II

De toscas letras amarelas
Balança o barco a remos no cais
Tímido e desolado
Pelo nome feroz que lhe puseram.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Manifesto linguístico

Eu gostaria de ter um dia audácia
e escrever em caixa alta
o que parece insultuoso
como um grito de palavras.
Ou então escrever
silenciosamente
modestamente e em minúsculas
(o meu nome todo
corrido
em série de caracteres
todos ao mesmo nível)
E usar onomatopeias
saltando os dicionários
a criar palavras novas
reproduzindo
o ribombar dos trovões.
Ou mesmo palavrões
picha-caralho
buceta-foda-se
merda
puta-puta
puta
como devem fazer
os escritores modernos.
Exclamar entusiasticamente
para parecer
extremamente feliz!!!
ou simplesmente pateta.

Por tudo aquilo que
não consigo,
Serei na verdade bastante
conservadora ou purista
Sem ser erudita escreverei
Odiando o acordo ortográfico
Amando as expressões brasileiras
Escreverei
semi-nua
(escorregando
para ser cheesy
pelas palavras estrangeiras)
como se houvesse
gente
que fala por mim.
Fazendo assim
poderei andar à toa
e ser finalmente

coerentemente
INCOERENTE.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O eterno amoroso

Ao jantar

experimentando a cozinha regional
- eu vestindo riscas com ar bastante bretão-
entre escargots aux fromage e vinho tinto
Tagarelamos.
A nova musa atende o telefone enquanto pica um pratinho de miúdos de anho.
Chamámos-lhe H. number two sem maldade, é homónima da antecessora.
Fala em espanhol.
O eterno amoroso perguntar-me-á em jeito semi-retórico, como quem quer provocar uma reacção:
- Sabes com quem fala? Com o marido.

Alheia à problemática da pobreza na Bolívia, da imigração ilegal e do prazer da bigamia, eu responderia, rimando, antes de retomar o maigré de canard:
E depois?
Incomodam-me bem mais os órgãos que come
Do que o número de homens com quem dorme.

Particularidades

Qu´est-ce que tu racontes de beau?
Inquirindo novidades, pergunta assim um amigo francês.
(Beleza está nesse jeito de querer saber o que conto eu de belo)

Biologia marinha

O fugu.
Segue nadando, comendo plâncton e acumulando ira.
De tanto acumular, há-de explodir.
Num gordo e letal balão de espinhos.
De seguida?
Seguirá nadando.
Comendo plâncton.
Acumulando ira.


Plâncton (do grego planktos, errante).

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Comédias e provérbios III

Laranja.
De manhã é ouro
À tarde prata
À noite mata.

Gomo a gomo
se segue
executando
uma sentença.

Caos musical

Cessou a balada
do bom humor inabalável.

Abalados pela tempestade
emudeceram os músicos
soltaram-se as cordas
torceram-se as tubas
voaram os pratos
escangalharam-se as
con-cer-tinas
e mesmo os foles
das gaitas
se esfarraparam.

Contingências do verbo III

Ele repara no seu gesto inadvertido de piscar o olho e comenta.
Ela replica prontamente, com a avidez de conhecimento de quem quer muito aprender uma língua.
- C´est du trix? Qu´est-ce du trix?
Haverá gargalhadas a dois tempos.
Ele trocista. Ela encabulada.

Contingências sim.
Do verbo ou da sedução?

Adventus

Um dia.
Seremos várias,
alisando fetos que transportaremos
na barriga.
E, entre desejos absurdos,
flutuações de humor
e um estado de
imunodepressão fisiológica,
Dos nossos lábios,
após a náusea matinal,
sairão palavras líricas
entoando ternas baladas
carregadas de inesperado
instinto maternal.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Comédias e provérbios II

A nova femme du ménage
(obstinada)
faz os meus vidros reluzirem
ignorando
(com orgulho czarino
e astutos malares)
a pilha de roupa que se acumula
em frágil equilíbrio
por passar.

Eu, de patroinha petulante, disparava,
Em Roma, sê romana.
Mas enfim consinto, resignada...
Quem tem telhados de vidro,
não atira pedras.

Comédias e provérbios I

Num final de tarde, a cauteleira invisual é diligente empurrando o seu homem paralítico pela passadeira.
Assim se percebe.
O amor é cego.

E também aleijadinho?

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Contingências do verbo II

Ou o que se ganha na tradução.
Pelo feminino, masculino, o neutro
e demais declinações das língua eslavas.
À procura de J, indaga L:
- Sabe dá paradeira dela?

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A importância

"É importante foder (ou não foder)?
É evidente que não, não é importante.
Fode quem fode e não fode quem não quer.
Com isso ninguém tem nada
Mas mesmo nada
A ver.

O que um tanto me tolhe é não poder confiar
Numa coisa que estica e depois encolhe,
Uma coisa que é mole e se põe a endurar e
A dilatar a dilatar
Até não se poder nem deixar andar
Para depois se sumir
E dar vontade de rir e d´ir urinar."

Mário Cesariny

A importância
do surrealismo.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Certa conditio moriendi

"Os poetas todos fitaram a morte
e reuniram-se depois numa assembleia de riso
para esquecer quem eram
Mas era a morte a única saída"

Ruy Belo

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Amor elefante

|na selva,
fôssemos bichos|

Seríamos paquidermes vivendo um amor desastrado, nédio e fiel.
E se morresses acarinhava as tuas ossadas com murcha tromba.

Contingências do verbo

F. confere adiamento ao convite para café.
K. é estrangeiro, não domina o português.
Dirá Esposo por ti.
Nervosamente, reage F. indelicada.
Ver-se assim já desposada,
ainda antes do primeiro encontro?

domingo, 17 de janeiro de 2010

Humor em tempos de crise

ou O Combate à Turbulência Sentimental

Diria.
Haverá sempre amor no meu riso.
Prometia.
Seremos profundamente felizes
Ouvindo músicas tristes.
Reforçava.
No meu silêncio.
(em vez de
gigantes
ou
crocodilos)
Há apenas silêncio.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

The love song of J. Alfred Prufrock

"And indeed there will be time
For the yellow smoke that slides along the street
Rubbing its back upon the window-panes;
There will be time, there will be time
To prepare a face to meet the faces that you meet;
There will be time to murder and create,
And time for all the works and days of hands
That lift and drop a question on your plate;
Time for you and time for me,
And time yet for a hundred indecisions,
And for a hundred visions and revisions,
Before the taking of a toast and tea.

(...)

And indeed there will be time
To wonder, ´Do I dare?` and, ´Do I dare?`
(...)
Do I dare
Disturb the universe?
In a minute there is time
For decisions and revisions which a minute will reverse."

T. S. Eliot

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

O vermelho e o verde

(por oposição aO Vermelho e o Negro?)

"- De que cor é o vermelho?
- É verde.

- Quem é o teu pai?
- É o revisor do comboio para a lua.

- O que é a loucura?
- É um braço solitário sorrindo para os meninos.

- Quem é Deus?
- É um vendedor de gravatas.
- Como é a cara dele?
- É bicuda, com uma maçaneta na ponta."

João Artur Silva, Mário Henrique Leiria, Antologia do Cadáver Esquisito (organização de M. Cesariny)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

O ano do gato

Se para o gato não existem comemorações
apenas restos de badanas na véspera
tiras de perú na consoada
Se para o gato apenas há
o dormir em novelo no Inverno
os miados lânguidos de Fevereiro
e o instinto da procriação do Maio
Aqui se proclama:
Dois mil e dez será o ano do gato.