quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Não se mate

Carlos, sossegue, o amor
é isso que você que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.

Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.

Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.

Carlos Drummond de Andrade


Opus-pistótono

O dia amanheceu fresco para Miss Cavendish.
Ou era fresca a saia curta de Miss Cavendish para o dia.

(mas sem dúvida, não haveria modo mais
amável de receber o canalizador)

domingo, 26 de setembro de 2010

A letra M

Na cicatriz por onde pássa a linha médio-axilar.
M de quê?
(M de mula, M de mar, M de mãe, M de mundo, M de quê?)
M de pneumotórax.

No metrô III

Ou Contra factos

Ao meu lado, discutem-se os feriados.
- Dia da Restauração. Eu para mim acho bem. Veja só, o pessoal da restauração nunca pára, nem feriado nem fim-de-semana. É que nem médico, enfermeiro, a mesma coisa.
- Restauração mas da Independência.
(inútil tentativa do senhor de bigode)
- Não, não, restauração tem muita saída, é um negócio com muita exploração. É que nem médico em hospital. Nunca pára.

Que se dane a Independência. Viva a Maria Caipira.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Na enfermaria

As mulheres de Botero trocam impressões enquanto tomam soro.
- E donde você mora, como é que é? É na campanha?
- Campanha? O que é isso?
- É assim. Fora da vila.
E para quem está de fora a conversa parece um pouco. Avec.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Necrológico dos desiludidos do amor

Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia

Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e de segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles."

Carlos Drummond de Andrade

E dos desiludidos que não se mataram
pum pum pum adeus, enjoada
A balança desequilibra
da cabeça voluptuosa
ao sugadouro do estômago
sem passar por nenhum coração.
E se a estes fizéssemos autópsia
o relatório da histologia
acusaria a gastrite.
(e isso não chegaria nem
para manchete de jornal)

No metrô II

À mercê da irritação matinal, eu resisto e não aceno de maldade
ao senhor de meia idade que corre para o metro em andamento .

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

No caminho

Se nos cruzarmos no caminho ao fim da tarde

Tu com a T-shirt amarela de que mais gosto
Eu vestindo uma saia de flores inconveniente
Tu não irás desviar o olhar do écran
Eu vou menear as ancas e continuar.

(ainda assim será difícil
o tal caminho mais fácil)

Questão de fé

Em Paris, ao som de uma boa banda sonora, assistimos a desatino conjugal entre Anna e Paul.

- Amo-te.
- Bem, eu sei que me amas. É a diferença entre nós.
- Como podes saber que te amo, ter tanta certeza?
- No princípio, antes de vir atrás de ti para este buraco, mesmo no princípio, nos primeiros dias, adormecia repetindo a mim própria "O Paul ama-me". Dizia-o em voz alta, centenas de vezes, como uma oração. Eram palavras sem significado, mal nos conhecíamos, mas qualquer coisa houve, alguma coisa se formou. Acreditei que me amasses, acreditei no teu amor, como acredita quem tem fé.

Na vida real, ninguém bebe tanto gin sem se embebedar.
Na vida real, já ninguém tem fé.

No metrô

A rapariga da pulseira de berloques revira os olhos ao telefone.
E sou eu que apanho o trejeito de desdém dirigido ao outro lado da linha.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Nos Cus

Pela pena de um António autografado, chega a voz de Paul Simon.

The problem is all inside your head
She said to me
The answer is easy if you
Take it logically
I´d like to help you in your struggle
To be free
There must be fifty ways
To leave your lover

E seria mais fácil se houvesse guerra
Os deslizes
para nádegas tristes
peitos murchos
Era o medo
Só um homem.

She said it´s really not my habit
To intrude
Furthermore, I hope my meaning
Won´t be lost or misconstructed
But I´ll repeat myself
At the risk of being crude
There must be fifty ways
To leave your lover
Fifty ways to leave your lover

Nos Cus de Judas
entre lógica distorcida ou unilateral
desculpávamos o cambalear
para germânica insípida
de bom humor e fartas carnes
E essa seria a primeira
de cinquenta maneiras.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Memória de elefante II ou III

Nos fusíveis da minha memória, cruza-se uma imagem.
Quando nenhum era ainda actual, o ex nº 1 vem pedir fogo.
É o ex nº2 que lhe acende um cigarro ao contrário.
Desatenta aos indícios, eu menosprezei a premonição dum futuro.
Incendiado.

domingo, 19 de setembro de 2010

Papa benta

Ou papaffiti

O reformado veste fato de desporto em missão cívica dominical.
Disfarça as pichagens do prédio com tinta branca.
Entre o bom dia, menina sorrio cortês à heresia.
Vão-se os sarrabiscos. Fica o Joana, come o Papa.