terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Love letter

Eu procurei um papel adequado à minha carta de amor e escolhi uma cartolina azul celeste.
Havia um poema de amor que não me largava a cabeça e merecia uma página macia assim.
Eu pensei demasiado tempo no poema e ele apareceu-me tão ridículo quanto todos os poemas de amor. 

Eu tenho ainda um poema de amor e uma página azul em branco. 
Por mais que me envergonhe, o poema não me larga. 

Um dia em que acorde mais cansada das palavras que nunca me deixam, hei-de escrever o poema de amor e preencher a minha página azul com palavras doces e patéticas.
Depois hei-de dobrar a folha bem dobrada e dar-lhe um fim realmente útil.

Como por exemplo,
para servir de calço à minha secretária manca.

(Love letter
Love let)

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Estrela de sofá

Tu não gostas mesmo de te exercitar no ginásio, pois não?
És como a Scarlett Johansson.
(yeah, right)

Postal de Natal

Tu perguntaste e eu não encontrei as palavras
para suavizar uma notícia tão triste. 
Desviei os olhos e tentei 
esconder as lágrimas como não pude. 
Mentes tão mal, disseste.
Nós tínhamos o pacto da verdade e
um pacto é um pacto, é preciso respeitá-lo. 

E ora forte ora fraca
eu ainda não sei bem
como respeitar
sem sofrimento
esse pacto
da verdade,
o que me ensinaste.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Dieta hipossalina

(se a temperar a sopa
só o sal das suas lágrimas
isso conta como sal?)

Appetizers

O eterno transeunte
Anthony Hopkins
passou por mim
a mastigar satisfeito
uma bucha
(de pão)

sábado, 14 de dezembro de 2013

Small plane

You used to take me up
I watched and learned how to fly
No navigation system beyond our eyes watching

I always went wrong in the same place
Where the river splits towards the sea
That couldn’t possibly be you and me

Sometimes you sleep while I take us home
That’s when I know we really have a home

I never like to land
Getting back up seems impossibly grand
We do it with ease

Danger, I never think of danger
I really am a lucky man
I really am a lucky man flying this small plane

I like it when I take the controls from you
And when you take the control from me

I really am a lucky man
I really am a lucky man flying this small plane
Eyes scan the path ahead and all around


Bill Callahan

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

As palavras

(quando releio febril
as minhas palavras
elas são ainda as mesmas
as mesmas palavras
de esperança)

sábado, 7 de dezembro de 2013

As lágrimas

A minha vizinha está a chorar.

Ao longo dos anos, sem nunca a ter visto
eu aprendi a conhecê-la sem querer:
sei em que trabalha
a música que ouve
as séries e os filmes que vê
habituei-me até à voz grossa e ao calão
da sua melhor amiga
e às jantaradas no terraço com amigos.

Ao longo dos anos, sem nunca a ter visto
eu posso considerá-la uma pessoa
genuína, com bom gosto musical e
extremamente ruidosa:
no sexo
(sobretudo na fase do enamoramento)
no convívio social
e nas conversas privadas.

A minha vizinha está a chorar.

Em soluços altos e entrecortados
(quase como uma gargalhada)

Um choro à sua medida.



Períodos difíceis

Se vier a padecer de hepatotoxicidade
a causa não será o vinho mas
brufen-ben-u-ron-brufen
brufen-ben-u-ron-brufen
brufen-ben-u-ron-brufen
(há períodos difíceis)

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Orientação gastronómica

Ela procurou ajuda e trabalhou as dúvidas
Até assumir a sua homossexualidade.
Ele cozinhou-lhe o jantar, preparou-lhe a merenda.
Ela semi-rendida mas fiel à sua natureza
Deixou-se apanhar pelo estômago.

As palavras

Todas as palavras
e frases
e imagens
voltam aos poucos.
(no banho
a ensaboar os pés 
na cama
na meia hora a mais
no caminho
apressada
e sempre
sempre
todas estão cá sempre)

Todas as palavras
e frases 
e imagens 
voltam aos poucos.
(e eu continuo sem saber
o que lhes fazer 
mas fico feliz porque 
se elas voltam
eu ainda  
cá estou
e eu ainda sou
eu)

(um quarto de ternura
um quarto de loucura
um quarto de luxúria
e um quarto
je ne sais quoi)


O silêncio

Nos dias em que sigo mais atrasada
encontro o Anthony Hopkins
no cruzamento para a Trindade.

Eu ensonada e apressada
ele distraído ou a fumar.

É bom manter as coisas assim.
Hannibal Lecter,
tenho ainda amor às coxas.

(as imagens de canibalismo
surgem ligadas a um programa
da BBC sobre um ataque de tubarões)

(o namorado foi comido
a ela levaram-lhe a coxa
e a nádega esquerda)

Um mar vermelho de sangue.
Dia 1 do período menstrual.



quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Para ser mais rigoroso:

Começo habituar-me ao inexacto,
ao impreciso e ao inacabado.
Caio em mim.
Começo  finalmente a sentir–me eu
quando, despudoradamente,
faço como me apetece.

Primavera de São Martinho

Ultimamente evito escrever pela incompatibilidade dos meus pensamentos com a liberdade de expressão. Entendam que, liberdade, cada um tem a que quer.
Acontece que têm chovido telefonemas de infelicidade e desamor. Um a um vão caindo os amores eternos que, com o meu, sustentavam o mundo.
Com o universo aos trambolhões aqui vamos, serenos tanto quanto nos é possível, construindo nos limites da angústia um novo e obrigado futuro. Porque se engana quem crê que o futuro não nos pertence; é a felicidade sonhada a maior perda que podemos sofrer.
Do outro lado do telefone sinto a angústia procurando paz.
Aqui vai:
Eu sou um calhau, nem muito grande nem muito pequeno, à minha medida. Sou como aquelas pedras, mais ou menos da altura de um homem, que existem pelas nossas serras, sempre prontas a rebolar. Mas eu não estou na nossa terra chã: estou na serra alpina onde os ventos frios de nordeste me lembram que tão cedo não vou degelar.
Ultimamente também, um calor primaveril derreteu algumas lascas do gelo que se colava à minha pele. Os musgos, que não são para brincadeiras, rejuvenesceram juntamente com a bicharada microscópica que se animou. Com a bicharada vieram novos passarinhos e a tanta animação veio juntar-se o passaroco que me costumava cantar.
Por vezes custa muito acreditar, mas quem conhece sabe que no Inverno não se sai à serra sem agasalho; os dias que amanhecem soalheiros acabam a nevar.
Estamos no Inverno. Achei por bem aproveitar aquela chuva de que vos falei e, com o frio que está para vir, cristalizar. 
Que quando vier um novo passaroco seja para se fazer cumprir o Verão. Porque aos Invernos frios estão as pedras habituadas.
De qualquer modo, mesmo que assim não seja, sempre teremos na natureza a nossa alma fractal que se renova em cada quatro estações.

Não há Primavera sem Inverno.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A transformação em pássaro


O espelho não engana. 
Foram-se as medidas cheias.
Adelgaçou-se o pescoço. 
Afilou-se o nariz, estreitou-se o rosto.
Ajudando à metamorforse,
pneumatizaram-se até os ossos.
Passo por passo, acontece.
A transformação em pássaro.
Cara de pássaro.
Coração de pássaro.
Batem irrequietas
As asas abertas sacudindo as penas.

Resta saber o que fazer aos olhos
que alheios à mudança
carregam ainda redondos
toda a sua humanidade.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Questão de olhar

A rapariga sem cabelo usa um lenço vermelho
e fuma um cigarro contra a parede
o joelho flectido

A rapariga é bonita
tem um olhar que
desafia.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Quem vê caras

A rapariga gorda e carrancuda à porta do metro
veste uma T-shirt que promete
em letras estilizadas
O teu sorriso é a tua maior riqueza.

domingo, 17 de novembro de 2013

A ilha do Corvo

Eu nadava nas águas profundas dos Açores com um grupo de mergulhadores mas não usava fato nem botija de oxigénio. Eles identificaram cada espécie de golfinho que, à nossa volta, saltou fora de água em acrobacias aos círculos. 
Delirava com a ideia de liberdade total, as minhas pernas soltas no vazio a nadar onde passam as baleias.
Nadámos sem parar da ilha Terceira até ao Corvo, o que equivale certamente a muitas milhas náuticas. 
Íamos em missão: havia um déspota a aterrorizar os habitantes. 
Os trabalhadores eram explorados e as marmotas estavam a entrar em extinção. 
As marmotas eram uns mamíferos estranhos, tipo malas de avião com pijamas de felpo cor de salmão vestidos. 
O cenário era apocalíptico como no filme, localizámos as marmotas e os trabalhadores.
O tirano dizia "Eu sou o dono da ilha". 
Era o mesmo que me disse "Eu sou o dono do prédio".
Eu comandava a expedição. 

sábado, 16 de novembro de 2013

Depressões de Dezembro


É sempre assim: o solstício de Inverno provoca-me depressões. Apetece-me encher a cara de pó-de-arroz verde, como fazia T.S. Elliot, e andar por aí, pelas ruas, olharenta e macerada, inspirando dó aos transeuntes. Incapaz de sentir ou escrever, entretenho-me a ler o que, em Dezembros distantes, outros pensaram. Pode ser que, desta forma, a minha cabeça desperte. Em 21 de Dezembro de 1801, Dorothy Wordsworth inscrevia, no seu Diário: “As cartas que hoje chegaram de Coleridge eram melancólicas: tinha sofrido dos intestinos. Cá em casa, ficámos todos muito deprimidos. William escreveu-lhe para Somersetshire.” Algum tempo depois, a 10 de Dezembro de 1812, Lord Byron confidenciava: estou ennuyé, para além do que é habitual. Sou todavia demasiado preguiçoso para me matar, além de que esse gesto iria certamente aborrecer Augusta...” Um século depois, em vésperas de Natal, o jovem Evelyn Waugh planeava o seu futuro: “Decidi deixar crescer o bigode, uma vez que, de momento, não me posso dar ao luxo de gastar dinheiro com roupas novas e quero mudar alguma coisa no meu aspecto físico.(...)

MFM, Vida Moderna

Nunca serei de direita

(...) A Direita portuguesa lutou quanto pôde para que o povo não tivesse acesso aos mecanismos de decisão política e se mantivesse num estado de miséria conducente à docilidade. Se hoje temos liberdade, é bom lembrá-lo, à Esquerda, não à Direita, o devemos. Apesar da propaganda, a Direita não está interessada em libertar nada, nem ninguém. O que aconteceu foi simples: quando o Estado deixou de servir os seus exclusivos interesses, a Direita reagiu com a fúria de quem vê um servo revoltar-se. O liberalismo que lhe interessa reduz-se quase só à possibilidade de despedir operários à vontade e de sanear serviços públicos com alguns vestígios de controlo por parte da oposição. Quanto ao resto, a protecção sabe-lhe bem.
Dito isto, é evidente que a Esquerda portuguesa, como aliás a europeia, enfrenta problemas. A Revolução Industrial fizera aparecer duas classes, sem inserção no velho mundo feudal, e por isso particularmente disponíveis para a luta. Natural seria, como veio a acontecer, que os principais conflitos tivessem como ponto central a propriedade, único critério que permitia distinguir os homens. Os operários não percebiam por que motivo haviam de aceitar esses burgueses brutais até há pouco tão desfavorecidos quanto eles. A desigualdade social, vista como natural num mundo mais baseado no status do que no dinheiro, aparecia-lhes como um crime revoltante.
Os trabalhadores perceberam que tinham de se unir para obter uma vida mais digna, para o que criaram sindicatos, cooperativas, partidos. Se havia quem falasse em Revolução, havia certamente muito mais gente preocupada em discutir horários de trabalho, a idade mínima para entrada nas fábricas, melhorias salariais. Foi assim que se foi gerando uma visão do mundo partilhado por milhões de trabalhadores, radicalmente oposta à cultura dominante. Talvez não soubessem que aquilo que andavam a fazer se chamava luta de classes, mas não tinham quaisquer dúvidas que estavam envolvidos num combate sério, digno e generoso.
Pouco a pouco, à medida que as sociedades se tornavam mais complexas, à medida que os governos social-democratas esbatiam as desigualdades mais gritantes, à medida que a prosperidade permitia aos filhos dos trabalhadores subir na vida, esta cultura foi-se esboroando, a ponto de, no berço da Revolução Industrial, só nas velhas comunidades se encontrarem ainda alguns vestígios. O velho Andy Capp, essa genial caricatura de um operário, está em riscos de extinção. E, com ele, todo o programa clássico da Social-Democracia, a começar nas nacionalizações.
A Esquerda moderna terá de resolver a tensão entre a tradição humanista, liberal e individualista, e a tradição socialista, cujos valores centrais são a solidariedade, a igualdade e a luta colectiva. A começar, precisa de dar aos seus membros a possibilidade de respirar livremente. Precisa, depois, de compreender que a palavra igualdade, quando por ela proferida, adquiriu uma conotação negativa, enquanto, na boca da Direita, o termo passou a significar igualdade de oportunidades para se comer salmão fumado ao jantar.
Seja eu o que for, de uma coisa tenho a certeza: não sou, nunca serei de direita. É mesmo possível que me considere de esquerda por me horrorizar a alternativa: a de pertencer a uma tribo que passa os dias a bramar contra os impostos, a lamentar o desaparecimento das criadas e a defender que os fracos devem ser eliminados. Mesmo paralisada, prefiro-lhe a Esquerda.

MFM, Vida Moderna

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Bluebird

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say, stay in there, I'm not going
to let anybody see
you.
there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I pour whiskey on him and inhale
cigarette smoke
and the whores and the bartenders
and the grocery clerks
never know that
he's
in there.

there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too tough for him,
I say,
stay down, do you want to mess
me up? 
you want to screw up the
works? 
you want to blow my book sales in
Europe? 
there's a bluebird in my heart that
wants to get out
but I'm too clever, I only let him out
at night sometimes
when everybody's asleep.
I say, I know that you're there,
so don't be
sad.
then I put him back,
but he's singing a little
in there, I haven't quite let him
die
and we sleep together like
that
with our
secret pact
and it's nice enough to
make a man
weep, but I don't
weep, do
you? 

Big night on the town

drunk on the dark streets of some city,
it's night, you're lost, where's your
room?
you enter a bar to find yourself,
order scotch and water.
damned bar's sloppy wet, it soaks
part of one of your shirt
sleeves.
It's a clip joint-the scotch is weak.
you order a bottle of beer.
Madame Death walks up to you
wearing a dress.
she sits down, you buy her a
beer, she stinks of swamps, presses
a leg against you.
the bar tender sneers.
you've got him worried, he doesn't
know if you're a cop, a killer, a
madman or an
Idiot.
you ask for a vodka.
you pour the vodka into the top of
the beer bottle.
It's one a.m. In a dead cow world.
you ask her how much for head,
drink everything down, it tastes
like machine oil.
you leave Madame Death there,
you leave the sneering bartender
there.

you have remembered where
your room is.
the room with the full bottle of
wine on the dresser.
the room with the dance of the
roaches.
Perfection in the Star Turd
where love died
laughing. 

terça-feira, 29 de outubro de 2013

As provações da amizade

Ou a história do pato atleta

Há quase um ano, convidei alguns amigos para um jantar em casa.
Não sendo apreciadora de pato, eu achava-me caso único, toda a gente gosta de pato.
Havia um pato congelado no frigorífico à espera de ser cozinhado.
Na minha lógica obstinada, julguei ser a ocasião ideal para brindar os meus convidados com um delicioso pato estufado.
Não me pareceu haver mistério na confecção do dito estufado, tarefa que nunca havia realizado antes, já que não gosto de pato.
Na hora da refeição, foi com muito desagrado que tolerei algumas garfadas.
Os convidados metiam dó, a insistir no pato, mal temperado e demasiado duro.
Inevitavelmente, o arroz e a salada foram um sucesso.

(O incidente do pato atleta permaneceu em segredo,
pacto de silêncio dos desgraçados convidados)



Casa é onde está o amor

A premissa estava errada.
Estou contigo porque quero e não porque preciso.

Nas águas-furtadas em frente ao Reno,
entre apontamentos de design e scones caseiros,
o casal esmera-se em esquecer as saudades da pátria
apoiando-se mutuamente e recriando outra paz doméstica.

E a verdade evapora no calor do chá:
Todos precisamos do outro,
espécie de estaca das nossas fraquezas
que nos ajuda a florir. 

sábado, 26 de outubro de 2013

Passeio no jardim


- Quando era pequena, gostava muito de tirar todos os espinhos às rosas.
- Isso parece-me uma metáfora daquilo em que te tornaste. 

(no meio do roseiral,
respirámos Sophia
e reinventámos o Principezinho)

para m. 
que carrega dentro de si
500g de gente 
e toda a ternura. 

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Vida Moderna- um excerto


Saddam Hussein

Há uma coisa em que sou particularmente boa: a ansiedade. Preocupo-me quando a filha anda de carro na Marginal, quando a irmã não escreve todos os dias, quando a mãe vai aos médicos, quando os amigos andam olheirentos, quando o canalizador se atrasa, quando o sobrinho organiza uma exposição, quando o carteiro não traz cartas, quando tocam à porta com veemência, quando descubro um cabelo branco, quando penso nas futuras noras, quando as pessoas não me deixam recados no gravador, quando o filho emagrece um grama, quando me esqueço do número do cartão de crédito, quando ouço os ratos no forro do tecto, quando deixo o computador ligado, quando meço a pressão arterial, quando a graduação dos óculos aumenta, quando a sobrinha parte para Cabo Verde, quando leio artigos sobre a osteoporose das mulheres.
Ao longo dos anos, motivos para me preocupar não têm faltado. Todos os dias, dou por mim a sofrer espirais ansiosas, a seguir ao pequeno-almoço, quando o tema do diário não me ocorre, quando noto que já não tenho garrafas de gás em casa, quando penso no orçamento da universidade, quando reparo que, um dia destes, terei cinquenta anos. Não nego que tem havido ocasiões, em que, de repente, fico sem assunto. Mas, para quem sofra de idêntica doença, tenho um remédio à mão. É altura de nos lançarmos em divagações sobre temas nobres, o trágico destino de quem nasce português, o drama da Esquerda dos anos vindouros, os efeitos da reeleição presidencial, os problemas da Terceira Idade. Esgotados estes temas, existe sempre o recurso, é preciso não esquecer, às obsessões mundiais, a doença das vacas loucas, o aquecimento global do planeta, a exaustão das reservas de energia, a Sida, a polémica sobre os tratamentos hormonais, os níveis de consumo de crack ou a extinção dos elefantes. Só depois de percorrer a via sacra dos horrores da Civilização Moderna, com a consciência de que previ o pior, me sinto bem. Poderão vir dilúvios, pestes, mortes: tenho tudo assente na agenda. (...)

Maria Filomena Mónica

Vida Moderna

Ou O meu reencontro literário

" A certa altura da minha vida, enveredei por uma escrita intimista, tanto mais surpreendente quanto a minha alma é tímida e o meu temperamento misantropo. Entre os motivos para esta exposição do ego, conta-se a necessidade de exorcizar as minhas relações com o quotidiano e o desejo de divertir os leitores. Deparei-me desde logo com um obstáculo. A uma investigadora solitária, com dias plácidos, pouco acontece. Acabei por me convencer que isso não constituía um problema.
Aqui ficam pois estas linhas, escritas na primeira pessoa do singular."

Maria Filomena Mónica

Quanto a mim, neste momento a passar a página 73, encontro-me divertida e recomendo.
Já me surpreendi diversas vezes com sorrisos largos e de orelha a orelha.
O poder balsâmico da escrita fluida e clara enquanto forma de expressão é revigorante.
Estou a caminho. 

Planos e palavrões para G.H.

Factos introdutórios a considerar:
Eu gosto muito de ler e não imagino a minha vida sem livros.
Eu não tenho tempo para ler despreocupadamente há mais meses do que consigo contar.
Eu tenho medo de alguns livros.

O plano:
Antevendo a liberdade que se aproximava, fiz a ronda das estantes e enumerei uma lista mental de livros a (re)ler. Passo a transcrever o plano original.
- Una casa para siempre, de Enrique Vila-Matas, livro fino que há vários meses se arrastava entre a mesa da sala, o móvel da entrada, a mesinha-de-cabeceira, o quarto-de-banho e diversas carteiras, eternamente inacabado.
- A piada infinita, de David Foster Wallace. Depois de uma empresa tão extenuante como a que tive, o meu espírito estóico e auto-flagelador não teve dúvidas em adicionar esta obra complexa de cerca 1000 páginas à lista, num plano inconsciente mas perserverante de prolongar o meu sacrifício.
- A arte da guerra, de Sun Tzu. Este é um livro pequeno que comprei numa edição da Quasi ao preço irrisório de 1.5€. Pelas minhas contas (a vantagem de datar os livros), tê-lo-ei lido em 2009, numa altura em que não estava preparada a assimilar o seu conteúdo, já que dele não julgo ter tirado qualquer proveito para a minha vida prática. Adicionei-o à lista, assumindo que depois de tão longa cruzada o mais sensato era preparar-me imediatamente para nova investida.
- A hora da estrela, A paixão segundo G.H. e Perto do coração selvagem, todos de Clarice Lispector. Na mesma linha, adicionei também à lista Clarice Lispector, uma vida, trabalho biográfico de Benjamin Moser. As obras de Clarice Lispector são para mim como um penso rápido colado há demasiado tempo em perna peluda. Já havia descolado os bordos noutras ocasiões, esta era pareceu-me a altura ideal para o arranque final a sangue frio e sem toalhas na boca.

A acção ou o relato dos factos conforme aconteceram:
Ordenei as minhas prioridades.
Terminei rapidamente Vila-Matas de forma inócua e com o objectivo primordial de cumprir um dever. Não deixarás um livro inacabado.
Avancei assim rapidamente para Lispector.
De forma razoável, deixei Perto do coração selvagem na estante, em local seguro donde só vislumbro a lombada e aonde a minha miopia impede a leitura do título. Relembrando os factos introdutórios com um exemplo concreto, eu tenho medo deste livro e já o li uma vez.
De forma sensata em tema e extensão, dediquei-me À hora da estrela. A história angustiante da nordestina Macabea não me causou mossa alguma, porque distante do que sou e breve o seu relato. Possivelmente deslumbrada pela beleza misteriosa de Lispector, eu comentava: puxa, como ela escreve bem.
Embalada pelas minhas elevadas expectativas, segui directamente para A paixão segundo G.H. O que daí sucedeu, pelo abalo estrutural nos meus planos, é sem dúvida merecedor de relato em parágrafo próprio.

Aqui vai, sobre A paixão segundo G.H. 
Vou ignorar a advertência inicial da autora a possíveis leitores, citando apenas que no seu caso, "G.H. foi dando a pouco e pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria."
Em suma, o livro conta-nos a história de uma mulher possivelmente bonita e de meia idade que toma ociosamente o café da manhã em roupão na sala do seu apartamento de cobertura da classe alta.
Entre conjecturas e cigarros, mergulha no bas-fond a arrumar o quarto da empregada demissionária.
É aqui que se desenrola o resto da acção. Encontra um quarto estranhamente solarengo, pinturas na parede e toda uma atmosfera que lhe era alheia, na sua própria casa. Entre novas conjecturas de mulher de meia idade, sem filhos e pouco que fazer, equaciona toda a problemática da biologia humana e feminina. À espreita do armário perro e ressequido de tanta luz, emerge uma barata.
Eu, que até aqui já me encontrava nauseada, contive agora o vómito. Odeio baratas.
Todas as conjecturas e metáforas à volta da barata exacerbaram o meu desconforto abdominal.
Poupando o leitor, enumero apenas algumas descrições sobre a barata:  "uma cariátide viva"; "Ela era arruivada. E toda cheia de cílios"; "os olhos eram radiosos e negros. Olhos de noiva"; "Vista de perto, a barata é um objecto de grande luxo. Uma noiva de pretas jóias".
Vacilei realmente quando a barata foi entalada entre as portas do armário e em todos os "milímetro grosso de matéria branca espremeu-se para fora" das páginas seguintes.
Os olhos da barata como ovários férteis revolveram-me. Já havia passado por estes sentimentos em 2010, denunciam os bilhetes de barco Millazo-Volcano, Volcano-Salina e o postal das Eolie escondidos entre páginas numa tentativa de suavizar a odisseia. Nessa altura, não logrei o objectivo de alcançar o fim, descolei apenas os bordos do penso. Mas agora, estóica e idiota, concluí o processo numa madrugada.
G.H. fantasiou que ia jantar crevettes fora com amigos e, gulosa (acrescento eu, que todo o evento carece realmente de tom humorístico), comeu a barata.
"Eu estava comendo a mim mesma, que também sou matéria viva."

A lição ou em jeito de conclusão:
Clarice Lispector, sua pretensiosa, tiras-me o ar.
De relevante, apenas tenho a dizer: Vá si fudê, C.L., e ainda G.H. e suas estúpidas valises.
Abandonei o meu plano estruturado.
Vou-me dedicar à actualidade.


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Metade

Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio

Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio.

Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que de tristeza
Que a mulher que eu amo seja para sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflicta em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Porque metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei.

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Para me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer
Porque metade de mim é plateia
E a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.

Oswaldo Montenegro


(porque metade de mim é amor
e a outra metade também)

O espinho

Nós que andávamos desatentos e ocupados não o valorizámos.
O espinho era fino e passou despercebido.
Um pequeno pontinho marrom sob a pele, que mal pode originar?
Pulámos e dançámos.
O espinho aprofundou-se e inflamou os tecidos.
Agora febris acusamos a carne inchada que lateja e dói.
Resta-nos a confiança.
Na medicina, aguentamos que nos lancetem a ferida infectada.
Em nós, porque a força está connosco para além do espinho.


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A paixão segundo G.H.


E é só o que posso dizer a meu respeito? Ser “sincera”? Relativamente sou. Não minto para formar verdades falsas. Mas usei demais as verdades como pretexto. A verdade como pretexto para mentir? Eu poderia relatar a mim mesma o que me lisonjeasse, e também fazer o relato da sordidez. Mas tenho que tomar cuidado de não confundir defeitos com verdades. Tenho medo daquilo a que me levaria uma sinceridade: à minha chamada nobreza, que omito, à minha chamada sordidez, que também omito. Quanto mais sincera eu fosse, mais seria levada a me lisonjear tanto com as ocasionais nobrezas como sobretudo com a ocasional sordidez. A sinceridade só não me levaria a me vangloriar da mesquinhez. Essa eu omito, e não só por falta do autoperdão, eu que me perdoei tudo o que foi grave e maior em mim. A mesquinhez eu também a omito porque a confissão me é muitas vezes uma vaidade, mesmo a confissão penosa. 

C.L.

sábado, 28 de setembro de 2013

Do calabouço

A sala é cápsula do tempo onde as horas não passam.
O tempo não se compadece das horas.

(relembram rugas e olheiras ao espelho
e estações furiosas à janela)

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Do horror

Acordei antes da hora com o pingue pingue de inundação no meu quarto.
Corri a casa dos vizinhos em trajes caseiros para confraternização forçada.
Lá fora, o dilúvio.

Apocalypse now.
É aqui.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A perversão

A minha vizinha tem obras em casa.
Ouço as brocas e também a explicação de onde estão as chaves e a que horas chega a empregada.
Antes de sair, ainda atira "Ah! E tem cervejas no frigorífico".

A perversão de hábitos é embaraçosa. 
Por ideia pré-concebida ou simplesmente por distorção alimentar. 

É trolha:
Bebe cerveja.
São 11:00 e o dia está nublado:
Nada como uma Cristal fresquinha para trabalhar com mais vigor. 

Provavelmente também presumiu que vai arrancar a carica com os seus próprios dentes.


A inveja

Ou O pecado capital do estudante

Os vizinhos em animada tainada no terraço
e o Bob Dylan a ecoar-me na sala
onde jazo sozinha e rodeada de livros

Levam-me a prometer que dentro de umas horas
irei pela calada e sorrateira
espetar-lhes um palitinho na campainha

(e quando acordarem
sobressaltados com o trinido
e ainda ébrios
irão ler no bilhete debaixo da porta)

How does it feeeeeel?



terça-feira, 17 de setembro de 2013

O osso metafórico

Propriedades biomecânicas do osso
(ou Lições de conduta)

Bone must be stiff and able to resist deformation, making loading possible.
Bone must also be flexible to adsorb energy by deforming: to shorten and widen when compressed, and to lengthen and narrow in tension without cracking.
If bone is too brittle, the energy imposed during loading will be released by structural failure: initially by development of microcracks and then by complete fracture.
If bone is too flexible and deforms beyond its peak strain, it will also crack and fracture.


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

La femme de trente ans

Amarás
o meu nariz
brilhante
as minhas estrias
os meus pontos pretos
os meus textos
os meus achaques
e as minhas manias
e as minhas gatas
de solteirona
ou não me amarás

Adília Lopes

domingo, 8 de setembro de 2013

Saudades

Não havia problema sem solução
e sabíamos que nem todos iriam gostar.
mas pouco interessava, tua vontade
(que era nossa alegria e nem sabíamos)
Pontificava.

Moviam-se montanhas, levantavam-se mortos
numa ginástica acrobática que não poupava ninguém.
Conseguias, criteriosamente, o que querias.
Porque querer é poder.

Prática? Muito prática.
Mas o pó-de-arroz, o batom vermelho carmesim...
Como gostava!
Estou chic? - perguntavas.
Très chic - respondia enquanto enlaçavas a raposa.

No carro ias-me contando os planos, segredos nossos.
Sempre a magicar entre o Ser e o Devir.
Como estavas a organizar, como iria ser.
Sabes quem somos? - Perguntarias hoje.
Temo não saber responder-te.

Na praia os escaldões eram certos; pouco importava.
No campo, com água e sal, junto à lareira curavam-se arranhões.
Cebola de Amarante, vinagre e sal.
Bolacha Maria, manteiga e cevada para os lanches invernais.
Roast beef e até a lampreia, meu Deus!
Tudo isto é felicidade.

Já somos poucos e eu nem sei se Sou.
Resta um, certo, que hoje luta contra tudo o que nunca foi:
os próprios medos ou os medos próprios.
Que falta fazes por aqui...

Hoje tenho saudades tuas.

P.S. Também hoje a Zefa Velha começa uma nova aventura. Estou certo que continuas a mover, e a fazer mover, os nossos corações.


1 de Março de 2013

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

As minhas palavras ainda são as do Ruy Belo


"Agosto não é a pura palavra não é determinada designação para um tempo
onde cada uma destas coisas anualmente se encontra comigo
Agosto são talvez estas palavras todas onde me perco onde procuro pôr os meus passos
onde afinal penso que permaneço um pouco mais do que no frágil edifício dos dias
Não escrevo neste domingo de agosto onde já houve sinos
e há gestos diferentes dos mesmos gestos que fazemos nos outros dias
Estou um pouco nestas palavras na própria
palavra agosto que ponho sobre o papel
e embora aponte para agosto não é esse mês de agosto
Estou em agosto estou um pouco em agosto"

Agosto o céu ainda está carregado
e há o cheiro doutras cinzas 
que sufoca sempre um pouco
e me apoquenta o sono
Em jeito de triste recordação. 

E quando volto a casa 
de férias ou fim-de-semana
já não te procuro
agosto no sofá da sala.

Ocupei o teu lugar à mesa.
Estou em agosto.
Estou sempre um pouco em agosto.


segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Pilantrinha da religião

A voz do outro lado do intercomunicador diz
- Eu só quero fazer uma pergunta:
  O que é que espera do futuro?
Eu contesto, o que é isto, perguntas destas a esta hora.
- Somos testemunhas de Jeová.
(para  a próxima mandem cá o Prince
que a conversa será outra)

terça-feira, 30 de julho de 2013

A um mar conhecido


Doce amor azul e cinzento profundo
Eterno mar que foi espelho de cristal
Para trás ficaram ruínas desse mundo
Memórias do nosso mar original.