sábado, 16 de novembro de 2013

Nunca serei de direita

(...) A Direita portuguesa lutou quanto pôde para que o povo não tivesse acesso aos mecanismos de decisão política e se mantivesse num estado de miséria conducente à docilidade. Se hoje temos liberdade, é bom lembrá-lo, à Esquerda, não à Direita, o devemos. Apesar da propaganda, a Direita não está interessada em libertar nada, nem ninguém. O que aconteceu foi simples: quando o Estado deixou de servir os seus exclusivos interesses, a Direita reagiu com a fúria de quem vê um servo revoltar-se. O liberalismo que lhe interessa reduz-se quase só à possibilidade de despedir operários à vontade e de sanear serviços públicos com alguns vestígios de controlo por parte da oposição. Quanto ao resto, a protecção sabe-lhe bem.
Dito isto, é evidente que a Esquerda portuguesa, como aliás a europeia, enfrenta problemas. A Revolução Industrial fizera aparecer duas classes, sem inserção no velho mundo feudal, e por isso particularmente disponíveis para a luta. Natural seria, como veio a acontecer, que os principais conflitos tivessem como ponto central a propriedade, único critério que permitia distinguir os homens. Os operários não percebiam por que motivo haviam de aceitar esses burgueses brutais até há pouco tão desfavorecidos quanto eles. A desigualdade social, vista como natural num mundo mais baseado no status do que no dinheiro, aparecia-lhes como um crime revoltante.
Os trabalhadores perceberam que tinham de se unir para obter uma vida mais digna, para o que criaram sindicatos, cooperativas, partidos. Se havia quem falasse em Revolução, havia certamente muito mais gente preocupada em discutir horários de trabalho, a idade mínima para entrada nas fábricas, melhorias salariais. Foi assim que se foi gerando uma visão do mundo partilhado por milhões de trabalhadores, radicalmente oposta à cultura dominante. Talvez não soubessem que aquilo que andavam a fazer se chamava luta de classes, mas não tinham quaisquer dúvidas que estavam envolvidos num combate sério, digno e generoso.
Pouco a pouco, à medida que as sociedades se tornavam mais complexas, à medida que os governos social-democratas esbatiam as desigualdades mais gritantes, à medida que a prosperidade permitia aos filhos dos trabalhadores subir na vida, esta cultura foi-se esboroando, a ponto de, no berço da Revolução Industrial, só nas velhas comunidades se encontrarem ainda alguns vestígios. O velho Andy Capp, essa genial caricatura de um operário, está em riscos de extinção. E, com ele, todo o programa clássico da Social-Democracia, a começar nas nacionalizações.
A Esquerda moderna terá de resolver a tensão entre a tradição humanista, liberal e individualista, e a tradição socialista, cujos valores centrais são a solidariedade, a igualdade e a luta colectiva. A começar, precisa de dar aos seus membros a possibilidade de respirar livremente. Precisa, depois, de compreender que a palavra igualdade, quando por ela proferida, adquiriu uma conotação negativa, enquanto, na boca da Direita, o termo passou a significar igualdade de oportunidades para se comer salmão fumado ao jantar.
Seja eu o que for, de uma coisa tenho a certeza: não sou, nunca serei de direita. É mesmo possível que me considere de esquerda por me horrorizar a alternativa: a de pertencer a uma tribo que passa os dias a bramar contra os impostos, a lamentar o desaparecimento das criadas e a defender que os fracos devem ser eliminados. Mesmo paralisada, prefiro-lhe a Esquerda.

MFM, Vida Moderna

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