segunda-feira, 30 de março de 2009

Bichos

Pai, sabes que é de ti que tenho este fervor quase religioso?
Tu, de mãos em concha, a salvar abelhas de choques frontais contra os vidros da nossa sacada.
Tínhamos colmeias na cidade e também tivemos mel no campo.
Mostraste-me os bichos-de-conta e eu nunca tive medo. Nem de sapos.

Tenho uma aranha a fazer teia na varanda.

Junto à nossa casa havia uma confeitaria e foi assim que conheci as baratas. No início queria apanhá-las e dar-lhes alface, eram quase grilos.

Foste tu que me explicaste que nos podem transmitir doenças, que é só de costas que parecem grilos.

Também disseste que se comesse sempre as sementes das melancias, iria crescer-me uma árvore de melancias na barriga.
E ríamos as duas. Tu do meu pensamento mágico. Eu da ideia do meu ventre a crescer com o fruto, dos ramos verdes a procurarem luz pelos meus ouvidos, pelas minhas narinas.
Eu a querer falar e em vez de palavras, folhas verdes.

A imagem da melancia nunca me deixou.
Nem o asco das baratas.

Agora que os meus vizinhos são Chineses vejo-as mais vezes.
A situação agravou-se com um conto do José Cardoso Pires, "As Baratas".

Leiam só:
Franzisko K. transformou-se assim num erudito e pertinaz despredador desta família de insectos. Blattae blattidiae, exconjuro vobis, o coeli, parecia ele congeminar, à maneira de exorcismo, quando investigava à lupa o cadáver das baratas. Estendidas de costas (era assim que a morte as deixava, de costas e na posição sacramental) as baratas tinham as patas cruzadas sobre o peito e as antenas pendentes, emurchecidas. Mas não nos iludamos, em vida aquelas criaturas mesquinhas desafiavam a tenacidade do homem: prolongavam-se para lá dele com uma indiferença suicida.

Estendidas de costas, na posição sacramental? Tive pesadelos depois disto.
Ainda agora tenho suores frios ao passar na estação dos Combatentes. Desvio o olhar e controlo o pânico.
Estúpidos painéis a armar em arte, baratas quase tridimensionais em grafismo pop.

Tornei-me impiedosa de Raid em punho. Contra as cucarachas, pulverizo pela calada da noite portas alheias.

De resto, sou bastante boazinha.
Tenho uma aranha a fazer teia na varanda.
E um gato convalescente.

1 comentário:

Marta Liliana disse...

An enchanting recount of a memorable childhood. Its clear how much you care about your parents and the significance your dad has had on your upbringing. Your love for animals and respect for creatures is reflected by the language you have chosen. Simply brilliant! Keep writing! xxx Marta Lili