quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Vida Moderna- um excerto


Saddam Hussein

Há uma coisa em que sou particularmente boa: a ansiedade. Preocupo-me quando a filha anda de carro na Marginal, quando a irmã não escreve todos os dias, quando a mãe vai aos médicos, quando os amigos andam olheirentos, quando o canalizador se atrasa, quando o sobrinho organiza uma exposição, quando o carteiro não traz cartas, quando tocam à porta com veemência, quando descubro um cabelo branco, quando penso nas futuras noras, quando as pessoas não me deixam recados no gravador, quando o filho emagrece um grama, quando me esqueço do número do cartão de crédito, quando ouço os ratos no forro do tecto, quando deixo o computador ligado, quando meço a pressão arterial, quando a graduação dos óculos aumenta, quando a sobrinha parte para Cabo Verde, quando leio artigos sobre a osteoporose das mulheres.
Ao longo dos anos, motivos para me preocupar não têm faltado. Todos os dias, dou por mim a sofrer espirais ansiosas, a seguir ao pequeno-almoço, quando o tema do diário não me ocorre, quando noto que já não tenho garrafas de gás em casa, quando penso no orçamento da universidade, quando reparo que, um dia destes, terei cinquenta anos. Não nego que tem havido ocasiões, em que, de repente, fico sem assunto. Mas, para quem sofra de idêntica doença, tenho um remédio à mão. É altura de nos lançarmos em divagações sobre temas nobres, o trágico destino de quem nasce português, o drama da Esquerda dos anos vindouros, os efeitos da reeleição presidencial, os problemas da Terceira Idade. Esgotados estes temas, existe sempre o recurso, é preciso não esquecer, às obsessões mundiais, a doença das vacas loucas, o aquecimento global do planeta, a exaustão das reservas de energia, a Sida, a polémica sobre os tratamentos hormonais, os níveis de consumo de crack ou a extinção dos elefantes. Só depois de percorrer a via sacra dos horrores da Civilização Moderna, com a consciência de que previ o pior, me sinto bem. Poderão vir dilúvios, pestes, mortes: tenho tudo assente na agenda. (...)

Maria Filomena Mónica

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