quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Planos e palavrões para G.H.

Factos introdutórios a considerar:
Eu gosto muito de ler e não imagino a minha vida sem livros.
Eu não tenho tempo para ler despreocupadamente há mais meses do que consigo contar.
Eu tenho medo de alguns livros.

O plano:
Antevendo a liberdade que se aproximava, fiz a ronda das estantes e enumerei uma lista mental de livros a (re)ler. Passo a transcrever o plano original.
- Una casa para siempre, de Enrique Vila-Matas, livro fino que há vários meses se arrastava entre a mesa da sala, o móvel da entrada, a mesinha-de-cabeceira, o quarto-de-banho e diversas carteiras, eternamente inacabado.
- A piada infinita, de David Foster Wallace. Depois de uma empresa tão extenuante como a que tive, o meu espírito estóico e auto-flagelador não teve dúvidas em adicionar esta obra complexa de cerca 1000 páginas à lista, num plano inconsciente mas perserverante de prolongar o meu sacrifício.
- A arte da guerra, de Sun Tzu. Este é um livro pequeno que comprei numa edição da Quasi ao preço irrisório de 1.5€. Pelas minhas contas (a vantagem de datar os livros), tê-lo-ei lido em 2009, numa altura em que não estava preparada a assimilar o seu conteúdo, já que dele não julgo ter tirado qualquer proveito para a minha vida prática. Adicionei-o à lista, assumindo que depois de tão longa cruzada o mais sensato era preparar-me imediatamente para nova investida.
- A hora da estrela, A paixão segundo G.H. e Perto do coração selvagem, todos de Clarice Lispector. Na mesma linha, adicionei também à lista Clarice Lispector, uma vida, trabalho biográfico de Benjamin Moser. As obras de Clarice Lispector são para mim como um penso rápido colado há demasiado tempo em perna peluda. Já havia descolado os bordos noutras ocasiões, esta era pareceu-me a altura ideal para o arranque final a sangue frio e sem toalhas na boca.

A acção ou o relato dos factos conforme aconteceram:
Ordenei as minhas prioridades.
Terminei rapidamente Vila-Matas de forma inócua e com o objectivo primordial de cumprir um dever. Não deixarás um livro inacabado.
Avancei assim rapidamente para Lispector.
De forma razoável, deixei Perto do coração selvagem na estante, em local seguro donde só vislumbro a lombada e aonde a minha miopia impede a leitura do título. Relembrando os factos introdutórios com um exemplo concreto, eu tenho medo deste livro e já o li uma vez.
De forma sensata em tema e extensão, dediquei-me À hora da estrela. A história angustiante da nordestina Macabea não me causou mossa alguma, porque distante do que sou e breve o seu relato. Possivelmente deslumbrada pela beleza misteriosa de Lispector, eu comentava: puxa, como ela escreve bem.
Embalada pelas minhas elevadas expectativas, segui directamente para A paixão segundo G.H. O que daí sucedeu, pelo abalo estrutural nos meus planos, é sem dúvida merecedor de relato em parágrafo próprio.

Aqui vai, sobre A paixão segundo G.H. 
Vou ignorar a advertência inicial da autora a possíveis leitores, citando apenas que no seu caso, "G.H. foi dando a pouco e pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria."
Em suma, o livro conta-nos a história de uma mulher possivelmente bonita e de meia idade que toma ociosamente o café da manhã em roupão na sala do seu apartamento de cobertura da classe alta.
Entre conjecturas e cigarros, mergulha no bas-fond a arrumar o quarto da empregada demissionária.
É aqui que se desenrola o resto da acção. Encontra um quarto estranhamente solarengo, pinturas na parede e toda uma atmosfera que lhe era alheia, na sua própria casa. Entre novas conjecturas de mulher de meia idade, sem filhos e pouco que fazer, equaciona toda a problemática da biologia humana e feminina. À espreita do armário perro e ressequido de tanta luz, emerge uma barata.
Eu, que até aqui já me encontrava nauseada, contive agora o vómito. Odeio baratas.
Todas as conjecturas e metáforas à volta da barata exacerbaram o meu desconforto abdominal.
Poupando o leitor, enumero apenas algumas descrições sobre a barata:  "uma cariátide viva"; "Ela era arruivada. E toda cheia de cílios"; "os olhos eram radiosos e negros. Olhos de noiva"; "Vista de perto, a barata é um objecto de grande luxo. Uma noiva de pretas jóias".
Vacilei realmente quando a barata foi entalada entre as portas do armário e em todos os "milímetro grosso de matéria branca espremeu-se para fora" das páginas seguintes.
Os olhos da barata como ovários férteis revolveram-me. Já havia passado por estes sentimentos em 2010, denunciam os bilhetes de barco Millazo-Volcano, Volcano-Salina e o postal das Eolie escondidos entre páginas numa tentativa de suavizar a odisseia. Nessa altura, não logrei o objectivo de alcançar o fim, descolei apenas os bordos do penso. Mas agora, estóica e idiota, concluí o processo numa madrugada.
G.H. fantasiou que ia jantar crevettes fora com amigos e, gulosa (acrescento eu, que todo o evento carece realmente de tom humorístico), comeu a barata.
"Eu estava comendo a mim mesma, que também sou matéria viva."

A lição ou em jeito de conclusão:
Clarice Lispector, sua pretensiosa, tiras-me o ar.
De relevante, apenas tenho a dizer: Vá si fudê, C.L., e ainda G.H. e suas estúpidas valises.
Abandonei o meu plano estruturado.
Vou-me dedicar à actualidade.


1 comentário:

Anónimo disse...

gostei, só isso.
sem comentários a tentar ser inteligentes!